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Jonathan Jackson

Thiago R. Oliveira

Ben Bradford

April 20th, 2022

Relações entre a polícia e a população em São Paulo: medo e legitimidade

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Estimated reading time: 10 minutes

Jonathan Jackson

Thiago R. Oliveira

Ben Bradford

April 20th, 2022

Relações entre a polícia e a população em São Paulo: medo e legitimidade

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Em São Paulo, muitos temem ser vítimas de crimes. Alguns também temem a polícia, mas podem aceitar violência extrema pelos policiais. Uma das soluções para legitimar o poder da polícia é a justiça processual, que aumenta a legitimidade, reforça o comportamento normativo dos policiais e incentiva a autorregulação, concluíram Jonathan Jackson (LSE & University of Sydney Law School), Thiago Oliveira (Oxford University) and Ben Bradford (UCL).

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São Paulo é um lugar onde a renda, a saúde, a segurança e o Estado de Direito são distribuídos de forma desigual. A região metropolitana tem aproximadamente 20 milhões de habitantes e enormes diferenças de um bairro para outro. No artigo “Fear and Legitimacy in São Paulo, Brazil: Police-Citizen Relations in a High Violence, High Fear City”, publicado recentemente na Law & Society Review, focamos em uma cidade com alta criminalidade, índices elevados de violência policial e baixa confiança. Onde a força e o poder estão implícitos — e muitas vezes explícitos — nas interações cotidianas entre a polícia e os cidadãos. E onde a imagem da Polícia Militar de São Paulo (PMSP) como “apenas mais uma gangue (violenta)” ainda tem valor cultural significativo. 

A violência é parte constitutiva da vida em sociedade. As ameaças silenciosas de uso da força vêm de várias direções: os índices de criminalidade são altos, o crime organizado governa partes da cidade e episódios de uso de força excessiva e até mortal por agentes do Estado são relativamente frequentes. É rotina ver policiais fortemente armados abordando e questionando cidadãos sob a mira de armas — principalmente homens jovens pretos e pardos que vivem em comunidades carentes. A polícia mata muita gente todo mês. Os moradores de São Paulo podem ser expostos ao mesmo tempo à violência policial, à violência da vizinhança e a relatos de execuções sumárias de membros de quadrilhas. A maioria das pessoas desconfia das autoridades legais e questiona sua legitimidade, uma vez que as relações com o público são marcadas por intimidação e medo. Mas embora contra-intuitivo até certo ponto, algumas pessoas temem a polícia ao mesmo tempo em que aceitam e até apoiam a violência extrema por policiais.

Diferentemente de trabalhos em contextos como o dos Estados Unidos, Reino Unido e Austrália, descobrimos que não é fácil separar as relações de autoridade instrumental e normativa. A fusão de elementos coercitivos e consensuais nos motivos que as pessoas têm (ou não) para obedecer às autoridades legais reflete a agressividade das táticas de policiamento e vigilância na maior cidade do Brasil, onde a violência é uma possibilidade até em interações cotidianas entre policiais e cidadãos.

Nesse contexto, testamos a teoria da justiça processual de Tom Tyler, que tem recebido bastante apoio em países como os Estados Unidos, Reino Unido e Austrália. A teoria da justiça processual argumenta que tratamento justo e decisões justas legitimam as autoridades legais aos olhos de quem a polícia serve, protege e regula. Abordagens processualmente justas incluem tratar as pessoas com dignidade e respeito, ser aberto e responsável, explicar e tomar decisões imparciais. Também abrangem escutar e interagir com as pessoas e passar a sensação de que seus motivos são confiáveis. Evidências sugerem que as experiências de policiamento processualmente justo e a legitimidade que geram — são relacionadas à cooperação voluntária e ao cumprimento das regras de forma mais sustentável, duradoura e ética do que no caso das experiências baseadas no uso de força ou ameaça. 

O policiamento fundamentado em processos oferece uma poderosa oportunidade para reforma da polícia. Quando as pessoas estão dispostas a cooperar com a polícia, cumprir as ordens do policial, acatar suas decisões e obedecer às leis que eles impõem (porque a legitimidade torna isso correto), diminui a necessidade de um policiamento agressivo que ameaça normalizar a expectativa de obedecer sem questionar e autoriza a polícia a usar força física quando isso não acontece. 

No entanto, evidências da África do Sul, Gana e Paquistão indicam que a eficácia e a corrupção podem ser pelo menos tão importantes quanto a justiça processual na definição do uso do poder normativamente adequado (legitimado). Nesses países, a polícia tem uma longa história de abuso de poder, predominam abordagens autoritárias de controle social e as instituições podem parecer incapazes de proporcionar um nível mínimo de segurança a todos os cidadãos. Na modelagem dos fatores que preveem a legitimidade nesses contextos, a justiça processual é importante, assim como a eficácia e a corrupção e/ou legalidade.

Sao Paulo police running at night
Polícia de São Paulo / Mídia NINJA (CC BY-NC-SA 2.0)

O Brasil tem um contexto intrigante para testar a teoria da justiça processual. Os dados foram coletados como parte de dois estudos complementares integrantes de um projeto maior realizado pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) intitulado “Construindo a democracia no dia-a-dia: direitos humanos, violência e confiança institucional”. O primeiro, realizado entre 2015 e 2018 com abordagem longitudinal em três ondas, avaliou a dinâmica das atitudes em relação à autoridade legal entre moradores de oito bairros de São Paulo. O segundo foi uma pesquisa transversal por amostra representativa da população de São Paulo, realizado em 2015. Em ambos os estudos, utilizamos técnicas padronizadas de modelagem estatística.

Primeiramente, examinamos as fontes da legitimidade policial. Contrariando expectativas, descobrimos que uma concepção relacional de justiça processual é essencial para que a polícia seja vista como legítima pela população. A justiça processual é importante porque um processo justo é um bem normativo por si só (todos merecem tratamento justo e processo decisório justo, independentemente do grupo social, político e econômico a que pertencem), mas nossas conclusões também sugerem que a justiça processual transmite inclusão e status, o que ajuda a incentivar a confiança nos policiais e fortalece a legitimidade do poder da polícia. Também está provado que o tratamento injusto e o viés de exclusão e difamação no processo decisório incentivam a desconfiança da polícia e corroem a legitimidade.

Ao contrário do observado no trabalho da África do Sul, esta constatação ressalta que, em alguns contextos de países em desenvolvimento, predominam valores sociais semelhantes aos encontrados em países desenvolvidos. Os países em desenvolvimento não formam um grande conjunto onde as relações entre a polícia e os cidadãos são homogeneamente diferentes dos contextos anglo-americanos. Em última análise, valores semelhantes provavelmente marcam as relações de autoridade na América Latina particularmente valores encontrados no Ocidente. 

Consentimento versus coerção — ou um pouco dos dois?

Também consideramos as ligações entre a obrigação de obedecer, o medo da polícia, a legitimidade e a obediência à lei. Estudos anteriores em contextos como os Estados Unidos e a Austrália concluíram que as relações entre autoridade e cidadão moduladas normativamente e instrumentalmente são empiricamente distintas e que a legitimidade é um fator preditivo mais importante de obediência à lei do que o medo de sanção e punição. A ideia é que, ao deixar a relação entre autoridade e cidadão menos coercitiva e mais consensual, a legitimidade reduz a necessidade de maneiras caras e pouco eficazes de combate ao crime, ampliando o espaço para estratégias de policiamento que priorizam o consentimento sobre a coerção.

No entanto, percebemos que não é tão simples separar as relações de autoridade instrumental e normativa em São Paulo. Descobrimos que, para alguns, o sentimento de obrigação de obedecer à polícia é normativo – eles sentem uma obrigação fundamentada normativamente de obedecer às regras e ordens que emanam de uma instituição policial que, no entendimento deles, exerce seu poder de maneiras socialmente apropriadas. Outras pessoas descreveram uma obediência prudencial e/ou essencialmente coercitiva, representando uma motivação instrumental de obedecer fundamentada no medo de violência e intimidação. Já os integrantes de um terceiro grupo afirmaram que não sentem obrigação de obedecer aos policiais e descreveram uma rebeldia baseada no entendimento de que os policiais dão ordens imorais.

Modelamos essas diferentes formas de obrigação (ou falta de obrigação) de obedecer e descobrimos que as relações de autoridade entre policial e cidadão em São Paulo podem ser concebidas ao longo de um continuum que vai de coercitivo a consensual. Esse continuum prevê a obediência à lei — se movendo de fatores instrumentais de um lado para a ambivalência no meio e para uma relação normativa do outro.

Aqueles que relataram menor obediência à lei tendem ao lado coercitivo, o que significa que são inclinados a ter medo da polícia e acreditar que os policiais agem de maneira normativamente imprópria. Em geral, eles relataram uma obrigação instrumental de obedecer aos policiais ou uma obrigação normativa de desobedecer por acreditarem que a polícia não tem autoridade legítima.

As pessoas que se encontram no meio da distribuição de obediência à lei demonstraram uma mistura ambivalente de conexões instrumentais e normativas com a polícia. Esses indivíduos podem pensar que a polícia “às vezes” ou “quase sempre” age apropriadamente, mas também sentem uma obrigação instrumental de obedecer à polícia e pensam que as pessoas muitas vezes têm medo da polícia. Eles também são mais propensos a sentir a obrigação de desobedecer à polícia por um sentimento de protesto cívico, pensando, por exemplo, que a polícia pode dar uma ordem imoral.

Aqueles que relataram níveis mais altos de obediência à lei tinham conexões normativas fundamentadas em não temer a polícia e em acreditar que os policiais agem de maneira normativamente apropriada e crer que a polícia tem autoridade legítima.

Incentivando a legitimidade para o cumprimento da lei

Embora apenas dados correlacionais sejam reportados, nossas conclusões sugerem que, mesmo em um contexto como São Paulo, táticas de policiamento processualmente justas podem incentivar a legitimidade e que a obediência normativa e a ausência de medo da polícia podem ajudar a entender por que algumas pessoas cumprem voluntariamente a lei. E assim como nos Estados Unidos, Reino Unido e Austrália, táticas agressivas de policiamento podem ser ativamente contraproducentes porque incentivam uma relação instrumental com a autoridade legal que quase não inibe a infração e pode até estimular essa prática.

A investigação sobre questões causais cabe a pesquisas futuras. Mas uma lição a ser internalizada a partir de nossas conclusões é que as relações de autoridade consensuais e coercitivas podem não ser tão distintas no entendimento que as pessoas têm sobre o poder e autoridade de polícia — talvez porque a própria polícia rotineiramente misture elementos consensuais e coercitivos.

Se cidadãos fazem uma conexão automática entre policiamento e violência, então as crenças do público sobre o valor moral que as leis representam e a natureza coercitiva do comportamento policial também são ambivalentes. Portanto, recomendamos que estudos futuros customizem suas ferramentas de medição e modelagem para considerar os tipos complexos de policiamento encontrados em São Paulo e em muitas outras cidades ao redor do mundo.

Observações:
• As ideias expressas neste artigo são dos autores e não refletem a posição do Centro ou da LSE
• Por favor, leia nossas Políticas de Uso (EN) antes de fazer comentários
• Tradução por Camila Fontana
• Imagem do banner: Mídia NINJA (CC BY-NC-SA 2.0)

About the author

Jonathan Jackson

Jonathan Jackson is a Professor in the Department of Methodology at the London School of Economics & Political Science. He is also an Honorary Professor of Criminology at the University of Sydney Law School and an Affiliated Scholar in the Justice Collaboratory of Yale Law School.

Thiago R. Oliveira

Thiago R. Oliveira is a Postdoctoral Researcher at the Centre for Social Investigation and a Research Fellow at Nuffield College. He has a PhD from the London School of Economics and Political Science. In September 2022 he will start as a Lecturer in the University of Surrey’s Department of Sociology.

Ben Bradford

Ben Bradford is Professor of Global City Policing at the Department of Security and Crime Science. He is Director of the JDI Institute for Global City Policing, an initiative joint funded by University College London, the Metropolitan Police Service and the Mayor's Office for Policing and Crime to promote policing research in London.

Posted In: Security | Society

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