O impacto da COVID-19 será mais grave na América Latina do que em qualquer parte do mundo. Para mitigar os danos e melhorar as perspectivas de longo prazo, a região precisa ter como meta uma recuperação verde com base no crescimento favorável ao meio ambiente e na expansão de energias renováveis, escreve Amir Lebdioui (LSE Latin America and Caribbean Centre).
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A COVID-19 somada ao colapso do preço do petróleo deve causar contração média de 7,2% nas economias latino-americanas este ano. Não será fácil se recuperar de um choque desses. Há, no entanto, uma percepção crescente de que voltar ao status quo não será suficiente e existe um ímpeto maior à ideia de “reconstruir melhor”.
Até o momento, o debate em torno de uma recuperação verde (e anteriormente do Green New Deal) se concentra entre algumas economias avançadas, com exceções menores como o “Pacto Eco Social do Sul” no contexto latino-americano. Contudo, a América Latina tem grande necessidade e grande potencial para uma recuperação verde, até porque seu rico legado acadêmico de desenvolvimento tem cada vez mais incorporado perspectivas indígenas que promovem o desenvolvimento em harmonia com a natureza (especialmente na Bolívia e no Equador).
Por que a recuperação após a crise da COVID precisa ser verde?
Uma vantagem crucial dos programas ecológicos de recuperação é oferecer a oportunidade de abordar vários objetivos socioeconômicos inter-relacionados simultaneamente: desenvolvimento econômico, geração de empregos, descarbonização e melhorias na saúde pública que também aumentam a resistência a pandemias. Essencialmente, os pacotes verdes de estímulo são voltados à chamada “crise tripla” de problemas econômicos, sociais e ambientais inter-relacionados ao criar uma economia vibrante e resistente à mudança climática, com benefícios compartilhados por todos.
Três razões principais justificam a priorização dos programas verdes de estímulo:
- Proteção ambiental
Embora a pandemia tenha levado indiretamente a resultados ambientais positivos no curto prazo, organizações internacionais e especialistas alertam que não há motivo para comemoração. A redução das emissões de gases causadores do efeito estufa foi provocada principalmente por medidas temporárias de confinamento e a produção industrial e o consumo de combustíveis fósseis tendem a retornar aos níveis pré-crise, como ocorreu após a crise financeira de 2008. A queda na cotação do petróleo devido ao recuo da demanda pode até incentivar o consumo de combustíveis fósseis em detrimento de energias renováveis. Além disso, automóveis são preferidos ao transporte público na tentativa de reduzir riscos de contágio. Ações urgentes são necessárias para que as emissões diminuam de forma sustentável a longo prazo. - Saúde pública
A COVID-19 teve impacto no meio ambiente, mas o meio ambiente também tem impacto nas pandemias. Transições energéticas são questão de saúde pública porque podem gerar benefícios de saúde a longo prazo e aumentar a resistência a pandemias. O ar mais limpo associado a uma energia mais limpa pode ajudar a diminuir as mortes por COVID-19. A degradação ambiental e as mudanças climáticas também contribuem para a transmissão de doenças de animais para humanos. Construir resiliência de longo prazo a pandemias exigirá, portanto, regulamentos ambientais mais rigorosos. - Recuperação em vez de resgate
De acordo com Lord Stern, do Instituto Grantham de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas e Meio Ambiente da LSE, um resgate sem recuperação não tem futuro. Um retorno ao financiamento de indústrias “poluentes” e “decadentes” poderia facilmente criar “ativos abandonados”. Quedas súbitas na demanda tornariam esses investimentos não lucrativos e deixariam seus trabalhadores desempregados. Para garantir empregos decentes e seguros, os governos precisam investir agora nos empregos e habilidades do futuro. A Agência Internacional de Energia Renovável (IRENA) e a Agência Internacional de Energia já demonstraram o enorme potencial gerador de empregos das energias renováveis (abaixo).
A justificativa econômica para uma recuperação verde na América Latina também é robusta. Um estudo recente do Banco Interamericano de Desenvolvimento revelou que os fundos soberano e de pensão do Chile teriam registrado taxas de retorno ainda maiores com investimentos verdes. A noção de que é preciso abrir mão de retorno financeiro para ter sustentabilidade é uma falácia.
No contexto pós-COVID-19, pacotes de estímulo proporcionam uma oportunidade de alavancar os benefícios socioeconômicos associados à transição energética. Mas contar apenas com as forças do mercado não será suficiente. Os pacotes de recuperação precisam ser ancorados em políticas industriais voltadas para o futuro. Os governos têm papel fundamental na promoção da transformação de estruturas produtivas em indústrias verdes. Isso se aplica ainda mais aos países em desenvolvimento, que carecem de recursos pré-existentes nessas áreas, onde as forças de mercado podem prejudicar a otimização de resultados em termos de bem-estar e onde tendências mais amplas nas políticas de combate à pobreza e recuperação há muito tempo favorecem empregos voltados para consumo em detrimento dos empregos voltados para produção.
Um relatório recente da IRENA (para o qual contribuí) apresenta várias políticas industriais que podem aumentar as capacidades industriais locais em energia renovável, incluindo programas de desenvolvimento de fornecedores, incentivos fiscais, mecanismos de controle de preços, apoio a pesquisa e desenvolvimento (principalmente por meio de capital paciente de longo prazo) e programas aprimorados de educação e treinamento.
Mudança climática e desenvolvimento na América Latina
Essas questões são cruciais para o futuro da América Latina porque o comércio da região está intrinsecamente ligado às mudanças climáticas. Vários países latino-americanos dependem de combustíveis fósseis que correm risco de se tornarem ativos abandonados à medida que o mundo descarboniza seus sistemas econômicos. Além das atividades extrativas, a região também depende de commodities agrícolas cuja produtividade é particularmente vulnerável a oscilações de temperatura e precipitação. Citando apenas alguns exemplos óbvios, a mudança climática representa séria ameaça à criação de salmão em cativeiro no Chile, à cafeicultura na Colômbia e às plantações de cacau no Equador.
Além da vulnerabilidade direta da produção da região à mudança climática, as empresas latino-americanas precisarão se adaptar à demanda por produtos mais sustentáveis entre os consumidores nos principais mercados. A popularidade crescente das propostas do Green New Deal nos EUA e União Europeia inevitavelmente trará mudanças regulatórias que moldarão padrões de consumo. Os países em desenvolvimento precisam se antecipar a essas regulamentações comerciais “verdes” e padrões de sustentabilidade, direcionando seus recursos produtivos para a exportação de bens e serviços verdes que terão acesso aos maiores mercados consumidores a longo prazo.
A resposta da América Latina até o momento
A Costa Rica lançou recentemente uma “estratégia bioeconômica” que busca enfrentar o desafio da COVID-19 por meio da promoção de uma economia do conhecimento verde. Mas de modo geral, as respostas da região à crise parecem ter ignorado esse lado, optando pela austeridade fiscal e pelo aumento da degradação ambiental.
No Brasil, a recente intensificação dos esforços para desmantelar proteções ambientais acompanhou a diminuição das exigências de cumprimento da legislação ambiental durante o surto de coronavírus. No Equador, o governo anunciou cortes no orçamento para educação em resposta à pandemia. Isso terá impacto negativo sobre o acúmulo de capital humano qualificado do Equador e, portanto, sobre a capacidade do país de migrar para atividades de maior valor agregado.
Essas respostas são insustentáveis a longo prazo. A capacidade de um país de escapar da armadilha da renda média depende em grande parte de sua capacidade de construir recursos inovadores e produtivos, o que requer capital humano qualificado, pesquisa e desenvolvimento (P&D). O gasto médio com P&D na região (como percentual do PIB) já está entre os mais baixos do mundo, bem abaixo da média mundial (ver gráfico a seguir). Para estimular o crescimento de longo prazo, os países latino-americanos precisam de mais investimentos em capital humano e P&D, não menos.
Isso também vale para P&D verde. Em 2014, somente quatro países eram responsáveis por três quartos das patentes de energia renovável registradas em todo o mundo: China, EUA, Japão e Alemanha. A menor parcela de gastos com P&D de baixo carbono nas regiões em desenvolvimento (incluindo a América Latina) terá implicações importantes para a capacidade das empresas locais de aproveitar a janela de oportunidade tecnológica proporcionada pelas transições energéticas.
O estímulo verde é arriscado ou romântico?
Críticos podem argumentar que as indústrias verdes estão além da fronteira de eficiência das empresas latino-americanas ou que intervenções governamentais podem ser muito caras. Programas ambiciosos desse tipo também enfrentam oposição dos lobbies de combustíveis fósseis e seus aliados locais. Isso significa que governos que favorecem transições verdes precisam de habilidade para atrair para a causa alianças amplas e coalizões entre setor público e setor privado. E, como para qualquer política industrial, existem riscos reais e desafios reais.
No entanto, nunca se pode esquecer que a alternativa a um programa de recuperação verde é muito mais arriscada e cara, tanto em termos econômicos quanto humanos. A COVID-19 é uma crise devastadora para a América Latina e o resto do mundo, mas a recuperação também oferece uma chance de dar passos ousados, drásticos e necessários em direção a modelos de desenvolvimento mais favoráveis ao meio ambiente.
O Fórum Canning House é uma nova parceria entre o Centro para América Latina e Caribe da LSE e a Canning House para promoção de pesquisa e engajamento de políticas públicas em torno do amplo tema “O Futuro da América Latina e do Caribe”.
Notas:
• As ideias expressas neste artigo são dos autores e não refletem a posição do Centro ou da LSE
• Tradução de Camila Fontana Corrêa
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