Apesar de ter um sistema de saúde relativamente bem colocado para combater a COVID-19, o Brasil tem hoje uma das maiores taxas de mortalidade do mundo. Frequentemente visto como um problema de coordenação entre os diferentes níveis de governo, o verdadeiro problema são as falhas do nível federal que se originaram em uma crise política pré-existente. Este tratamento catastrófico feito de cima para baixo da pandemia neutralizou os pontos fortes e, muitas vezes, os esforços heroicos do sistema nacional de saúde, escrevem Gabriela Lotta (FGV), Michelle Fernandez (Universidade de Brasília), Deisy Ventura (Universidade de São Paulo), Danielle Rached (FGV), Melania Amorim (Universidade Federal de Campina Grande), Lorena Barberia (Universidade de São Paulo), Tatiane Moraes (Fiocruz), e Clare Wenham (LSE Health Policy).
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Oito meses após o início da pandemia, mais de 160.000 brasileiros morreram de COVID-19, o que representa a quarta maior taxa de mortalidade per capita do mundo (em 12 de novembro). Ainda hoje, não há sinais de que o governo esteja controlando o vírus. Como podemos explicar esta enorme tragédia humana e mudar seu curso?
Brasil estava bem preparado para lidar com a COVID-19?
É importante reconhecer que o Brasil estava relativamente bem preparado para enfrentar a pandemia quando ela chegou à América Latina.
Primeiro, o Brasil tem um forte sistema nacional de saúde (o Sistema Único de Saúde, ou SUS), que foi estabelecido no início dos anos 1990. Apesar do subfinanciamento crônico, o SUS conseguiu ampliar o acesso aos serviços de saúde, principalmente por meio da Estratégia Saúde da Família. Como a cobertura universal de saúde demonstrou ser um fator determinante na gestão da pandemia mundo afora, o Brasil estava bem posicionado para prevenir, detectar e responder à crise.
Em segundo lugar, o Brasil tem experiência recente no enfrentamento a epidemias, incluindo as de febre amarela e zika. Esses surtos evidenciaram os benefícios de um sistema de atenção primária no SUS que atinge o território brasileiro e cobre 74% da população, com equipes de saúde da família cuidando das condições de saúde no território e em nível local. A comunidade nacional e internacional apontava o trabalho dos 286.000 agentes comunitários de saúde (ACS) como elemento de potencial sucesso no enfrentamento à pandemia especialmente por causa das relações próximas e contínuas que os ACS possuem com as famílias. O SUS também tem um histórico forte e uma experiência significativa em vigilância epidemiológica, inclusive considerando o conjunto de dados disponíveis no sistema de saúde (DATASUS), que fornece informações ricas e relevantes sobre a saúde nacional e o acesso à saúde.
As raízes políticas para o fracasso na resposta ao COVID-19
Mas se o Brasil estava em uma posição relativamente forte, o que deu errado com a chegada do COVID-19? O problema não era o sistema de saúde, mas sim uma crise política pré-existente que foi exacerbada pela pandemia.
Se, em condições normais, espera-se que uma crise provoque uma união nacional, em vez disso, no caso brasileiro, vimos uma crescente polarização política (e epidemiológica). Por um lado, o governo federal adotou uma abordagem laissez-faire, com poucas intervenções em saúde pública, colocando o funcionamento da economia em primeiro lugar. Por outro lado, vários governos estaduais e municipais criaram ações de proteção a seus cidadãos adotando medidas sanitárias, mas que foram sinalizadas como oposição política pelo Governo Bolsonaro.
Mas, não se engane, não se trata apenas de uma ausência de ação coordenada para combater a pandemia: o governo federal agiu e tem agido deliberadamente para disseminar a doença. O presidente, em particular, tem incentivado as pessoas, especialmente as mais vulneráveis, a se exporem ao vírus.
“E daí?” perguntou Bolsonaro após 5.000 mortes. “Do que você tem medo? Temos que encarar isso aí!”, ordenou quando atingimos 91.000 mortes; afinal “todo mundo morre”. Com 100.000 mortes, ele disse apenas que “temos que continuar”. E dias atrás, com 162 mil brasileiros mortos, ele aproveitou uma cerimônia no palácio presidencial para alertar que “não podemos fugir disso, fugir da realidade; temos que deixar de ser um país de maricas”.
Contra todos os conselhos de profissionais e acadêmicos da saúde pública, ele tem incentivado aglomerações; interage com pessoas sem usar máscara; promove o uso de medicamentos não comprovados; e, mais recentemente, até começou a fazer discursos que desestimulam a participação dos cidadãos em campanhas futuras de vacinação. Essas posições populistas e anticientíficas dividem ainda mais a sociedade, produzindo um custo significativo para a sociedade.
Priorização e negligência
Até julho, o governo federal havia investido apenas 30% dos recursos emergenciais disponíveis para a pandemia. Os créditos emergenciais também foram disponibilizados prioritariamente às grandes empresas, deixando as pequenas e médias empresas em segundo lugar. Já os recursos de renda emergencial chegaram tardiamente para parte da população mais vulnerável e sua continuidade é incerta.
Em termos de monitoramento e rastreamento de contatos de infectados, o Ministério da Saúde não conseguiu produzir indicadores sistemáticos que permitissem aos tomadores de decisão coordenar uma resposta mais eficaz. Os dados federais continuam sem coerência com outras fontes e muitos dados importantes nem mesmo são coletados. A vigilância epidemiológica também tem sido negligente. O governo federal optou por testes sorológicos “rápidos” em vez do RT-PCR, embora este último represente o meio mais eficaz de diagnóstico de COVID-19.
Em conjunto, estas ações do governo federal fizeram a resposta do Brasil à pandemia ser uma das piores do mundo.
A Organização Mundial da Saúde sugere que a taxa de resultados positivos da COVID-19 não deve ultrapassar 5% dos exames em um período de 14 dias, mas a taxa no Brasil foi de 33,2% em agosto, que é a segunda maior taxa de positividade do mundo. Isso mostra o erro na estratégia de testagem. O Brasil também tem a maior taxa de mortalidade entre enfermeiras infectadas pela COVID-19 e o maior número de mortes maternas relacionadas à COVID-19 no mundo, ambas decorrentes de graves falhas de atendimento. Essas mortes foram descritas por pesquisadores como um feminicídio liderado pelo Estado.
Nas áreas rurais, a prevalência de COVID-19 também está aumentando rapidamente, com uma taxa de mortalidade alarmante, levando ao colapso dos sistemas de saúde locais. Em 11 de novembro de 2020, 871 indígenas tinham morrido de COVID-19 e houve 38.978 casos confirmados desde o início da pandemia. Muitos acadêmicos também denominaram estas mortes como uma forma de genocídio.
De maneira geral, a tragédia brasileira é explicada principalmente pelos fracassos do Governo Federal, que neutralizaram os pontos fortes do SUS. Tão importante quanto a própria vacina, serão os esforços para imunizar o SUS contra o desmantelamento das políticas públicas promovidas por sucessivos governos, que acabaram prejudicando o povo brasileiro.
Embora tenhamos as piores expectativas em relação ao governo atual, temos orgulho do SUS, que ainda resiste e conseguiu evitar que essa catástrofe tirasse a vida de mais concidadãos.
Notas:
• As ideias expressas neste artigo são dos autores e não refletem a posição do Centro ou da LSE
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