A crise do coronavirus no Brasil se converte em crise econômica, aprofundando e escancarando desigualdades históricas. Com um mercado de trabalho heterogêneo e alto índice de informalidade, a garantia de renda para trabalhadores vulneráveis é essencial no combate à pandemia. Nesse contexto, a renda básica universal ressurge no horizonte de políticas públicas como forma de inclusão e expansão da cidadania, escrevem Mara Nogueira (Birkbeck, University of London), Aiko Ikemura Amaral (LSE Latin America and Caribbean Centre) e Gareth A. Jones (LSE Latin America and Caribbean Centre) como parte de uma série de artigos vinculados ao seu projeto “Engineering Food: infrastructure exclusion and ‘last mile’ delivery in Brazilian favelas“, financiado pela British Academy.
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O primeiro caso do novo coronavírus no Brasil foi divulgado pelo Ministério da Saúde em 26 de fevereiro. Duas semanas antes, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) havia publicado os dados da Pesquisa Nacional de Domicílios (PNAD). Realizada trimestralmente, a PNAD mostrou que o setor informal no Brasil somava cerca de 38 milhões de trabalhadores, representando mais de 50% da força de trabalho em 11 das 27 unidades da federação.
Para além do trabalho informal, pesquisadores da rede de pesquisa solidária estimaram que a recessão gerada pela pandemia pode afetar até 81% da força de trabalho no país, colocando em condição de vulnerabilidade trabalhadores em posições protegidas por leis trabalhistas e consideradas até então estáveis.
Globalmente, a pandemia vem escancarando os efeitos deletérios da reestruturação global dos mercados laborais. Trabalhadores da chamada “economia informal” ou da gig economy sofrem com a escassez de renda gerada pela interrupção de suas atividades ou correm riscos ao permanecerem ativos em busca da sobrevivência. A pandemia revela o desmantelamento do regime de bem-estar social nos países do norte e suas limitações históricas no sul, onde a cidadania mediada pelo trabalho formal foi sempre excludente.
Governos de vários países vêm criando medidas emergenciais de transferência direta de renda a populações vulneráveis, reacendendo neste percurso debates sobre a renda básica universal como forma de distribuição de riquezas e expansão da cidadania.
Vida e morte na “democracia racial” brasileira
O Brasil é o sétimo país mais desigual do mundo no que tange à distribuição de renda. Tal desigualdade é representada em um mercado de trabalho heterogêneo e segmentado por raça e gênero, entre outros aspectos.
Pela primeira vez em 2018, a população negra (pretos ou pardos, de acordo com a classificação do IBGE) se tornou majoritária na rede pública de ensino superior. No entanto, no mesmo ano, entre brancos e negros com ensino superior completo, trabalhadores negros recebiam em média 45% a menos. Na força de trabalho como um todo, o salário médio das pessoas brancas era 73,9% superior à dos trabalhadores pretos ou pardos (R$1.608). A vulnerabilidade é, portanto, maior entre negros que ocupam apenas 29% dos cargos de gerência, sendo também a maioria entre os pobres e os trabalhadores informais.
O cenário de desigualdade é exacerbado pela pandemia que mais uma vez dilacera a tese da “democracia racial” brasileira. No Brasil, negros são a maioria entre os usuários do setor público de saúde e são também desproporcionalmente portadores de doenças como diabetes e hipertensão que podem agravar quadros de COVID-19. Dados mostram claramente a desigualdade racial dos impactos: entre as vítimas graves e fatais, a maioria é preta ou parda.
Os efeitos desproporcionais da doença assim como de suas consequências econômicas em grupos invisibilizados – migrantes, negros, indígenas, informais e pobres – escancaram as desigualdades interseccionais históricas que mediam o acesso à direitos básicos e à cidadania no país.
À espera do “coronavoucher”
No dia 30 de março, o senado brasileiro aprovou o projeto de lei que institui uma renda emergencial de R$600 para trabalhadores informais – R$1200 para mulheres chefes de família – durante os próximos três meses, em resposta à crise causada pelo novo coronavírus. A medida foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro e tem sido chamada pelo próprio governo federal e pela mídia de coronavoucher.
Em fase de implementação, o auxílio está sendo pago pela Caixa Econômica Federal e é esperado ansiosamente. No grupo “Dignidade Ambulante”, que congrega vendedores de rua e ativistas da cidade de Belo Horizonte no Whatsapp, a discussão e a troca de informações sobre o auxílio é intensa. Transmitida ao vivo pela TV Senado, a votação do último dia 30 foi divulgada amplamente no grupo e até comparada a uma “final de Copa do Mundo” que proporcionaria “a maior audiência” de todos os tempos para a emissora.
A alta expectativa justifica-se pela situação precária de trabalhadores não-assalariados e desprotegidos pelas leis trabalhistas, para os quais o sustento e o acesso à moradia dependem do trabalho diário nas ruas. Como demonstrou Mara Nogueira no artigo “Deslocando a informalidade”, as estratégias de vida dos pobres urbanos muitas vezes perpassam diversos tipos de informalidade. O confinamento para essa categoria representa portanto uma extrema queda na qualidade de vida e até mesmo a ameaça real da fome. Nesse contexto, muitos resistem ao isolamento, ecoando o argumento disseminado pelo presidente de que “O Brasil não pode parar”.
Informalidade e cidadania
A conduta desastrosa de Bolsonaro é alvo constante de críticas dentro e fora do país. O presidente, no entanto, encontra adeptos entre os trabalhadores da economia popular. Historicamente excluídos da cidadania mediada pelo trabalho formal, ambulantes lidam cotidianamente com incertezas e com a repressão do poder público, tendo uma visão negativa do Estado e da classe política associada fortemente à corrupção. No Brasil, com alguma variação regional, a categoria é tratada por governos municipais de forma punitiva através de políticas públicas higienistas que visam à remoção de ambulantes dos centros urbanos.
Paradoxalmente, a renda emergencial aprovada representaria de certa forma um reconhecimento praticamente inédito, ainda que temporário, de um grupo de cidadãos cuja relação com o Estado nunca foi mediada pela lógica dos direitos. A realidade, no entanto, é que muitos enfrentam dificuldades tecnológicas para acessar o benefício, cujo recebimento é atrelado a um cadastro digital.
A incerteza tornou-se ainda maior após certas categorias (como ambulantes e trabalhadores de aplicativo) terem sido excluídas do programa pelo governo federal, que apelidou o benefício de “coronavoucher”. Reproduzido pela mídia, o rótulo tem sido criticado por especialistas por estigmatizar seus beneficiários, associando-os a uma doença e reproduzindo, portanto, a retórica higienista.
Nesse sentido, o rótulo reforçaria uma noção de anormalidade que nega o sentido da cidadania e dos direitos, expressando a ideia de transitoriedade. Nessa acrobacia semântica, o governo tentaria se afastar de debates sobre a pauta história da renda básica universal, reacendidos pela pandemia e pelos prognósticos de arrefecimento e crise econômica aguda no contexto pós-pandêmico.
A renda básica universal em debate
No Brasil, menções à ideia de renda mínima remontam à década de 1970 mas o primeiro projeto de lei apresentado sobre o tema surgiu em 1991. O autor era o então senador Eduardo Suplicy (Partido dos Trabalhadores, São Paulo), talvez o mais famoso defensor da política no país. Aprovada no Senado, a proposta de criação de um imposto de renda negativo nunca foi votada na Câmara dos Deputados e acabou sendo relegada em um contexto em que a estratégia nacional de combate à pobreza seguiu um caminho distinto.
Na América Latina, o aumento do desemprego, da pobreza e da informalidade no contexto pós-ajuste estrutural geraram a necessidade de um “ajuste social” que ganhou forma nas políticas de transferências de renda condicionais. O Bolsa Família, o maior e mais bem sucedido programa de transferência de renda do país, foi implementado durante o governo Lula (Partido dos Trabalhadores) em 2004.
Aplaudido internacionalmente, o programa atende atualmente 13,5 milhões de famílias, colecionando admiradores e críticos. À direita, é criticado como um programa assistencialista que estimula a acomodação e, à esquerda, por não atacar as causas estruturais da desigualdade.
Críticas semelhantes são feitas à renda básica universal. À primeira vista similar, esta difere das transferências condicionais por ter como objetivo o direito à uma renda mínima individual (e não familiar) incondicional para todos os cidadãos. Tal política garantiria uma maior cobertura da população-alvo ao evitar os erros de exclusão, eliminando o estigma associado aos beneficiários e também a necessidade do aparato burocrático de monitoramento das condicionalidades e, por fim, reduzindo o desincentivo ao trabalho ao desassociar o benefício da renda familiar.
Ironizada no passado como uma política sem possibilidade factível de implementação, a renda básica universal ressurgiu como medida de enfrentamento da pandemia em vários países, inclusive nos EUA e no Reino Unido.
Mesmo após o fim das medidas de isolamento social, estima-se que a pandemia provocará uma recessão global. Para o Brasil, o FMI estimou uma queda de 5,2% do PIB brasileiro para 2020 e um ritmo baixo de recuperação em função de características estruturais da economia. O mundo impactado pela crise é também marcado por um mercado de trabalho reestruturado com níveis crescentes de informalização e precarização, no qual a estabilidade é mais um privilégio do que um direito. As desigualdades e dificuldades cotidianas já existiam em condições normais e foram apenas ressaltadas e aprofundadas pela pandemia.
É urgente restaurar a ótica dos direitos para além do estado de bem-estar social fundado nas relações trabalhistas, enfraquecido e limitado em sua cobertura. A renda básica universal é uma opção de extensão da cidadania para além da formalidade que pode garantir uma estabilidade mínima às pessoas cuja rotina demanda a garantia diária da sobrevivência.
Notas:
• As ideias expressas neste artigo são dos autores e não refletem a posição do Centro ou da LSE
• Este artigo é parte de um projeto em andamento intitulado ‘Engineering Food: infrastructure exclusion and ‘last mile’ delivery in Brazilian favelas’, financiado pela British Academy sob seu programa de Urban Infrastructure and Well-Being.
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