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Mara Nogueira

Aiko Ikemura Amaral

Gareth Jones

May 26th, 2020

Os impactos do COVID-19 no precarizado mercado laboral brasileiro demandam políticas abrangentes como a renda básica universal

0 comments | 10 shares

Estimated reading time: 7 minutes

Mara Nogueira

Aiko Ikemura Amaral

Gareth Jones

May 26th, 2020

Os impactos do COVID-19 no precarizado mercado laboral brasileiro demandam políticas abrangentes como a renda básica universal

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A crise do coronavirus no Brasil se converte em crise econômica, aprofundando e escancarando desigualdades históricas. Com um mercado de trabalho heterogêneo e alto índice de informalidade, a garantia de renda para trabalhadores vulneráveis é essencial no combate à pandemia. Nesse contexto, a renda básica universal ressurge no horizonte de políticas públicas como forma de inclusão e expansão da cidadania, escrevem Mara Nogueira (Birkbeck, University of London), Aiko Ikemura Amaral (LSE Latin America and Caribbean Centre) e Gareth A. Jones (LSE Latin America and Caribbean Centre) como parte de uma série de artigos vinculados ao seu projeto “Engineering Food: infrastructure exclusion and ‘last mile’ delivery in Brazilian favelas“, financiado pela British Academy.

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O primeiro caso do novo coronavírus no Brasil foi divulgado pelo Ministério da Saúde em 26 de fevereiro. Duas semanas antes, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) havia publicado os dados da Pesquisa Nacional de Domicílios (PNAD). Realizada trimestralmente, a PNAD mostrou que o setor informal no Brasil somava cerca de 38 milhões de trabalhadores, representando mais de 50% da força de trabalho em 11 das 27 unidades da federação.

Para além do trabalho informal, pesquisadores da rede de pesquisa solidária estimaram que  a recessão gerada pela pandemia pode afetar até 81% da força de trabalho no país, colocando em condição de vulnerabilidade trabalhadores em posições protegidas por leis trabalhistas e consideradas até então estáveis.

Brazil percentage of informal workers by state
Nota: Trabalhadores informais incluem trabalhadores sem carteira, trabalhadores domésticos sem carteira, empregadores sem CNPJ, trabalhadores por conta própria sem CNPJ e trabalhadores familiar auxiliares. Fonte: IBGE.

Globalmente, a pandemia vem escancarando os efeitos deletérios da reestruturação global dos mercados laborais. Trabalhadores da chamada “economia informal” ou da gig economy sofrem com a escassez de renda gerada pela interrupção de suas atividades ou correm riscos ao permanecerem ativos em busca da sobrevivência. A pandemia revela o desmantelamento do regime de bem-estar social nos países do norte e suas limitações históricas no sul, onde a cidadania mediada pelo trabalho formal foi sempre excludente.

Governos de vários países vêm criando medidas emergenciais de transferência direta de renda a populações vulneráveis, reacendendo neste percurso debates sobre a renda básica universal como forma de distribuição de riquezas e expansão da cidadania.

Vida e morte na “democracia racial” brasileira

O Brasil é o sétimo país mais desigual do mundo no que tange à distribuição de renda. Tal desigualdade é representada em um mercado de trabalho heterogêneo e segmentado por raça e gênero, entre outros aspectos.

Pela primeira vez em 2018, a população negra (pretos ou pardos, de acordo com a classificação do IBGE) se tornou majoritária na rede pública de ensino superior. No entanto, no mesmo ano, entre brancos e negros com ensino superior completo, trabalhadores negros recebiam em média 45% a menos. Na força de trabalho como um todo, o salário médio das pessoas brancas era 73,9% superior à dos trabalhadores pretos ou pardos (R$1.608). A vulnerabilidade é, portanto, maior entre negros que ocupam apenas 29% dos cargos de gerência, sendo também a maioria entre os pobres e os trabalhadores informais.

Brazil wages by race and gender
Nota: Pessoas com 14 anos de idade ou mais. Fonte: IBGE.

O cenário de desigualdade é exacerbado pela pandemia que mais uma vez dilacera a tese da “democracia racial” brasileira. No Brasil, negros são a maioria entre os usuários do setor público de saúde e são também desproporcionalmente portadores de doenças como diabetes e hipertensão que podem agravar quadros de COVID-19. Dados mostram claramente a desigualdade racial dos impactos: entre as vítimas graves e fatais, a maioria é preta ou parda.

Os efeitos desproporcionais da doença assim como de suas consequências econômicas em grupos invisibilizados – migrantes, negros, indígenas, informais e pobres – escancaram as desigualdades interseccionais históricas que mediam o acesso à direitos básicos e à cidadania no país.

À espera do “coronavoucher”

No dia 30 de março, o senado brasileiro aprovou o projeto de lei que institui uma renda emergencial de R$600 para trabalhadores informais – R$1200 para mulheres chefes de família –  durante os próximos três meses, em resposta à crise causada pelo novo coronavírus. A medida foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro e tem sido chamada pelo próprio governo federal e pela mídia de coronavoucher.

Em fase de implementação, o auxílio está sendo pago pela Caixa Econômica Federal e é esperado ansiosamente. No grupo “Dignidade Ambulante”, que congrega vendedores de rua e ativistas da cidade de Belo Horizonte no Whatsapp, a discussão e a troca de informações sobre o auxílio é intensa. Transmitida ao vivo pela TV Senado, a votação do último dia 30 foi divulgada amplamente no grupo e até comparada a uma “final de Copa do Mundo” que proporcionaria “a maior audiência” de todos os tempos para a emissora.

A alta expectativa justifica-se pela situação precária de trabalhadores não-assalariados e desprotegidos pelas leis trabalhistas, para os quais o sustento e o acesso à moradia dependem do trabalho diário nas ruas. Como demonstrou Mara Nogueira no artigo “Deslocando a informalidade”, as estratégias de vida dos pobres urbanos muitas vezes perpassam diversos tipos de informalidade. O confinamento para essa categoria representa portanto uma extrema queda na qualidade de vida e até mesmo a ameaça real da fome. Nesse contexto, muitos resistem ao isolamento, ecoando o argumento disseminado pelo presidente de que “O Brasil não pode parar”.

Informalidade e cidadania

A conduta desastrosa de Bolsonaro é alvo constante de críticas dentro e fora do país. O presidente, no entanto, encontra adeptos entre os trabalhadores da economia popular. Historicamente excluídos da cidadania mediada pelo trabalho formal, ambulantes lidam cotidianamente com incertezas e com a repressão do poder público, tendo uma visão negativa do Estado e da classe política associada fortemente à corrupção. No Brasil, com alguma variação regional, a categoria é tratada por governos municipais de forma punitiva através de políticas públicas higienistas que visam à remoção de ambulantes dos centros urbanos.

Two street vendors take a break in front of the Copacabana Palace Hotel, Rio de Janeiro, Brazil
Grupos como vendedores ambulantes tendem a ser excluídos de uma noção da cidadania mediada pelo trabalho formal (Mídia NINJACC BY-NC-SA 2.0)

Paradoxalmente, a renda emergencial aprovada representaria de certa forma um reconhecimento praticamente inédito, ainda que temporário, de um grupo de cidadãos cuja relação com o Estado nunca foi mediada pela lógica dos direitos. A realidade, no entanto, é que muitos enfrentam dificuldades tecnológicas para acessar o benefício, cujo recebimento é atrelado a um cadastro digital.

A incerteza tornou-se ainda maior após certas categorias (como ambulantes e trabalhadores de aplicativo) terem sido excluídas do programa pelo governo federal, que apelidou o benefício de “coronavoucher”. Reproduzido pela mídia, o rótulo tem sido criticado por especialistas por estigmatizar seus beneficiários, associando-os a uma doença e reproduzindo, portanto, a retórica higienista.

Nesse sentido, o rótulo reforçaria uma noção de anormalidade que nega o sentido da cidadania e dos direitos, expressando a ideia de transitoriedade. Nessa acrobacia semântica, o governo tentaria se afastar de debates sobre a pauta história da renda básica universal, reacendidos pela pandemia e pelos prognósticos de arrefecimento e crise econômica aguda no contexto pós-pandêmico.

A renda básica universal em debate

No Brasil, menções à ideia de renda mínima remontam à década de 1970 mas o primeiro projeto de lei apresentado sobre o tema surgiu em 1991. O autor era o então senador Eduardo Suplicy (Partido dos Trabalhadores, São Paulo), talvez o mais famoso defensor da política no país. Aprovada no Senado, a proposta de criação de um imposto de renda negativo nunca foi votada na Câmara dos Deputados e acabou sendo relegada em um contexto em que a estratégia nacional de combate à pobreza seguiu um caminho distinto.

Na América Latina, o aumento do desemprego, da pobreza e da informalidade no contexto pós-ajuste estrutural geraram a necessidade de um “ajuste social” que ganhou forma nas políticas de transferências de renda condicionais.  O Bolsa Família, o maior e mais bem sucedido programa de transferência de renda do país, foi implementado durante o governo Lula (Partido dos Trabalhadores) em 2004.

Aplaudido internacionalmente, o programa atende atualmente 13,5 milhões de famílias, colecionando admiradores e críticos. À direita, é criticado como um programa assistencialista que estimula a acomodação e, à esquerda, por não atacar as causas estruturais da desigualdade.

Beneficiaries of Bolsa Familia, in millions
Fonte: MDS

Críticas semelhantes são feitas à renda básica universal. À primeira vista similar, esta difere das transferências condicionais por ter como objetivo o direito à uma renda mínima individual (e não familiar) incondicional para todos os cidadãos. Tal política garantiria uma maior cobertura da população-alvo ao evitar os erros de exclusão, eliminando o estigma associado aos beneficiários e também a necessidade do aparato burocrático de monitoramento das condicionalidades e, por fim, reduzindo o desincentivo ao trabalho ao desassociar o benefício da renda familiar.

Ironizada no passado como uma política sem possibilidade factível de implementação, a renda básica universal ressurgiu como medida de enfrentamento da pandemia em vários países, inclusive nos EUAno Reino Unido.

Mesmo após o fim das medidas de isolamento social, estima-se que a pandemia provocará uma recessão global. Para o Brasil, o FMI estimou uma queda de 5,2% do PIB brasileiro para 2020 e um ritmo baixo de recuperação em função de características estruturais da economia. O mundo impactado pela crise é também marcado por um mercado de trabalho reestruturado com níveis crescentes de informalização e precarização, no qual a estabilidade é mais um privilégio do que um direito. As desigualdades e dificuldades cotidianas já existiam em condições normais e foram apenas ressaltadas e aprofundadas pela pandemia.

É urgente restaurar a ótica dos direitos para além do estado de bem-estar social fundado nas relações trabalhistas, enfraquecido e limitado em sua cobertura. A renda básica universal é uma opção de extensão da cidadania para além da formalidade que pode garantir uma estabilidade mínima às pessoas cuja rotina demanda a garantia diária da sobrevivência.

 

Notas:
• As ideias expressas neste artigo são dos autores e não refletem a posição do Centro ou da LSE
• Este artigo é parte de um projeto em andamento intitulado ‘Engineering Food: infrastructure exclusion and ‘last mile’ delivery in Brazilian favelas’, financiado pela British Academy sob seu programa de Urban Infrastructure and Well-Being.
• Por favor, leia nossas Políticas de Uso (EN) antes de fazer comentários

About the author

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Mara Nogueira

Mara is a lecturer in geography at Birkbeck, University of London and a visiting fellow at the LSE Latin America and Caribbean Centre. She is an urban geographer whose research focuses on socio-spatial inequality and the urban politics of urban space production in Brazil. She completed a PhD in Human Geography and Urban Studies at LSE. She also holds a BSc and a MSc in Economics from the Federal University of Minas Gerais, Brazil.

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Aiko Ikemura Amaral

Dr Aiko Ikemura Amaral is post-doctoral research officer at LSE Latin America and Caribbean Centre for the British Academy project "Engineering food: infrastructure exclusion and ‘last mile’ delivery in Brazilian favelas". She holds a PhD in Sociology from the University of Essex and is also a teaching associate at the Centre of Latin American Studies, University of Cambridge.

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Gareth Jones

Gareth Jones is Director of the Latin America and Caribbean Centre, as well as Professor of Urban Geography in the Department of Geography and Environment at LSE and an Associate Member of the International Inequalities Institute. He has an interdisciplinary academic background, having studied economics, geography, and urban sociology. He holds an undergraduate degree from University College London and a doctorate from the University of Cambridge. He has held numerous visiting positions, including at the University of California San Diego, the University of Texas at Austin, and the Universidad Iberoamericana.

Posted In: COVID19 | Economics | Gender | Posts em português

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