No Brasil, as camadas mais vulneráveis da população sofrem para ter acesso a uma alimentação de qualidade. Com a pandemia, a desigualdade alimentar ficou ainda mais evidente. A população carente ficou sem ter o que comer e, ao mesmo tempo, os pequenos agricultores familiares não tinham como escoar sua produção. Neste contexto, é preciso repensar a cadeia de suprimentos de alimentos frescos para que ela possa atender estes dois elos frágeis dos sistemas alimentares urbanos, escrevem André Duarte, Lars Meyer Sanches, Michele Martins e Vinicius Picanço (todos do Insper, São Paulo) como parte de uma série de artigos vinculados ao seu projeto “Engineering Food: infrastructure exclusion and ‘last mile’ delivery in Brazilian favelas“, financiado pela British Academy.
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Com o objetivo de promover mudanças positivas e duradouras no mundo, a ONU (Organização das Nações Unidas) estabeleceu como um dos seus ODS (Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável) acabar com a fome e garantir acesso a alimentos seguros, nutritivos e suficientes para todos, em particular, às populações mais vulneráveis. Ao mesmo tempo, dobrar a produtividade agrícola e a renda dos pequenos produtores de alimentos, especialmente os agricultores familiares.
Em relatório de 2019, a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) apontou que 820 milhões de pessoas no mundo ainda passam fome e cerca de 2 bilhões sofrem com insegurança alimentar moderada ou grave. Estes números explicam os crescentes indicadores de desnutrição e obesidade ao redor do mundo. No Brasil, a situação não é diferente, o mesmo estudo aponta que a obesidade está fortemente correlacionada com a insegurança alimentar, com destaque para a dificuldade de acesso a uma alimentação saudável.
Nas grandes cidades brasileiras, o acesso a uma alimentação saudável é um enorme desafio a ser vencido. A evolução da disponibilidade domiciliar de alimentos no Brasil indica que alimentos in natura ou minimamente processados vêm perdendo espaço para alimentos processados e ultraprocessados. Bairros da periferia e favelas possuem uma oferta significativamente menor de produtos saudáveis e nutritivos (frutas, verduras e legumes) quando comparados com bairros mais ricos, reforçando uma forte desigualdade social e alimentar. Estabelecimentos comerciais existentes nestes locais preferem trabalhar com produtos processados ou ultra processados, pois são menos perecíveis e, muitas vezes, mais baratos.
Muitas destas áreas são consideradas desertos ou pântanos alimentares, ou seja, são locais onde o acesso a alimentos in natura ou minimamente processados é raro ou inexistente (desertos alimentares) ou são áreas onde há a predominância da venda e distribuição de produtos altamente processados e ultra processados, altamente calóricos e pouco saudavéis (pântanos alimentares).
A alimentação durante a crise do COVID-19
Com a pandemia, o acesso a alimentos frescos ficou ainda mais restrito para moradores das áreas de menor renda, mesmo as mais beneficiadas pelas doações de alimentos. Como normalmente ocorre, grande parte das doações são de alimentos processados, não perecíveis e industrializados, pois são de mais fácil manipulação, estocagem e favorecem a logística de distribuição.
O fechamento das escolas e creches impediu que crianças e adolescentes tivessem acesso a uma refeição saudável por dia, no mínimo. Pesquisa recente da UNICEF no Brasil revelou que as famílias de baixa renda com crianças e adolescentes foram as que mais sofreram com a queda na renda, com o aumento da insegurança alimentar e o consumo de alimentos não saudáveis. Segundo a pesquisa, cerca de 63% das famílias que residem com crianças e adolescentes afirmaram que tiveram queda na renda, 27% destas famílias passaram por momentos em que os alimentos acabaram e não havia mais dinheiro para reposição e 31% passaram a consumir alimentos industrializados em maior quantidade. Estes números são ainda maiores nas camadas mais pobres da população.
Os problemas dos pequenos produtores agrícolas
Na outra ponta da cadeia de alimentos frescos as dores também foram grandes. O fechamento de escolas, bares e restaurantes fez com que boa parte dos pequenos produtores de frutas, verduras e legumes não tivesse como comercializar e escoar sua produção. Alguns produtores, com a retração das vendas, preferiram destruir a plantação ao invés de fazer a colheita. Os custos da colheita sem uma perspectiva de venda foram as explicações para a destruição em massa de alimentos ricos em nutrientes.
Em pesquisa da HF Brasil, 68% dos pequenos agricultores afirmaram, em junho, que tiveram sua rentabilidade parcialmente ou totalmente prejudicada. Segundo o CEPEA, sofreram mais os produtores de alimentos mais perecíveis (como folhosas, tomate e banana) e os pequenos agricultores familiares que dependem de uma cadeia mais longa para comercializar e distribuir os seus produtos. Com todas estas incertezas, há a preocupação de que agricultores reduzam a área de plantio e de que a oferta destes produtos, no médio prazo, seja reduzida, elevando os preços para consumidores finais.
Uma cadeia de suprimentos mais inclusiva
A cadeia de suprimentos de alimentos frescos é extremamente complexa, não só pelas particularidades dos seus produtos, mas também pelas características dos seus atores. A incerteza do clima, o longo tempo entre a produção e colheita, a variação da demanda e a perecibilidade do produto tornam a gestão desta cadeia extremamente desafiadora. Junta-se a isto, a falta de infraestrutura em áreas urbanas e rurais, a grande quantidade de pequenos produtores, intermediários e comerciantes sem apoio e formação para gerenciarem seus negócios. Há de se destacar os métodos, hábitos e comportamentos inadequados dos diversos atores desta cadeia, incluindo seus consumidores finais.
Segundo a FAO, 30% de toda a produção mundial de alimentos é jogada fora como perdas (que ocorrem devido a problemas na plantação, colheita, armazenamento e transporte do produto fresco) ou desperdícios (relacionados a práticas inadequadas de varejistas e aos hábitos de consumo da população). Este descarte tende a ser maior nos países mais pobres e chega a ser de 50% para frutas e verduras.
O redesenho das cadeias de suprimentos focando em dimensões mais inclusivas e sociais envolve mais do que simplesmente reduzir a segurança alimentar das áreas mais vulneráveis, passa por entender profundamente os hábitos de compra, preferências e consumo, além das práticas de gestão dos pequenos comerciantes locais. Na outra ponta, é preciso entender os desafios e dificuldades dos pequenos agricultores para o plantio, armazenagem e escoamento de sua produção.
A pandemia mostrou o descompasso entre a oferta e a demanda por alimentos frescos. O problema não é a falta de alimentos, mas o excesso de oferta de alimentos em lugares e canais errados. Enquanto agricultores jogavam fora parte expressiva de sua produção, os moradores de favelas não conseguiam ter acesso a uma alimentação saudável. Esta desconexão agravou problemas segurança alimentar além de aumentar o desperdício e a perda de alimentos.
Conectando os elos frágeis da cadeia de alimentos frescos
Várias instituições se mobilizaram para conectar os dois elos frágeis desta cadeia. O projeto Campo-Favela, iniciativa que nasceu de pesquisadores do projeto “Engineering Food: infrastructure exclusion and‘ last mile ’delivery in Brazilian favelas” (uma parceria entre pesquisadores do Insper e LSE), conseguiu arrecadar mais de R$ 2 milhões em doações que foram usadas para comprar aproximadamente 600 toneladas de alimentos frescos ajudando, direta ou indiretamente, cerca de 1300 famílias de pequenos produtores agrícolas. Estes produtos foram distribuídos em 50 comunidades vulneráveis de São Paulo e do Rio de Janeiro, beneficiando outras 63000 famílias de baixa renda.
O Projeto Campo-Favela teve como foco tanto as famílias carentes de áreas urbanas, quanto os agricultores familiares. As famílias tinham acesso às cestas compostas por alimentos frescos como frutas, verduras e ovos. Esses produtos eram entregues em associações de moradores das regiões vulneráveis e cabia a elas fazer a distribuição até as famílias. Um dos objetivos do projeto era de fomentar um novo canal de vendas onde as associações de moradores pudessem comprar os produtos diretamente dos pequenos agricultores.
Este projeto trouxe e mostrou a importância de se repensar as cadeias e sistemas alimentares dos grandes centros urbanos. O acesso ao alimento fresco é apenas uma parte da solução, mas é preciso levar educação alimentar para as populações mais carentes. Na outra ponta, o agricultor conhece muito pouco do seu cliente e também precisa melhorar sua capacitação para gestão do seu negócio. A cadeia como um todo precisa de maior integração para reduzir o alto nível de perdas e desperdícios.
São vários os gargalos que precisam ser explorados, compreendidos e resolvidos, além de vários atores que precisam ser envolvidos para que iniciativas temporárias se tornem soluções sustentáveis e de longo prazo. Relações que tragam benefícios tanto para os consumidores de baixa renda como para os pequenos produtores agrícolas é um desafio para que a gestão da cadeia de suprimentos se torne uma ferramenta de inclusão e redução da desigualdade social.
Notas:
• As ideias expressas neste artigo são dos autores e não refletem a posição do Centro ou da LSE
• Este artigo é parte de um projeto em andamento intitulado ‘Engineering Food: infrastructure exclusion and ‘last mile’ delivery in Brazilian favelas’, financiado pela British Academy sob seu programa de Urban Infrastructure and Well-Being.
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