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Erin K. McFee

January 28th, 2021

Fazer o mal para ser bom: a participação de jovens em grupos armados não estatais na Colômbia

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Estimated reading time: 7 minutes

Erin K. McFee

January 28th, 2021

Fazer o mal para ser bom: a participação de jovens em grupos armados não estatais na Colômbia

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Erin McFee headshotIntervenções e programas governamentais elaborados para os jovens “maus” envolvidos em atividades de grupos armados da Colômbia são simplistas demais para terem eficácia. A realidade do envolvimento dos jovens é complexa e heterogênea, principalmente porque pode ser motivado por “boas” intenções e escondido por “bons” comportamentos. Somente uma abordagem mais holística e uma mudança no pensamento paradigmático podem reconhecer essas realidades e avançar em direção a esforços mais efetivos para reduzir a participação dos menores, escreve Erin K. McFee (LSE Latin America and Caribbean Centre), após participarem do Researcher Links Workshop – Governança, Crime e Segurança Internacional, organizado conjuntamente por LSE Latin America and Caribbean Centre, PUC-SP e UNICAMP.

• Also available in English

Na véspera de Natal de 2015, conversei com Dani, 10 anos, em Las Delicias, um bairro na periferia de Florencia, capital do Departamento de Caquetá. Dani era frequentador da Casa de Reconciliação, ONG pela qual fiz meu trabalho de campo. Ele era o caçula dos três filhos de uma mãe solteira que morava ali perto. Ele ia todo dia à escola e suas notas demonstravam algum esforço. A mãe, Camila, foi forçada a sair de onde vivia em 2002 por causa da guerrilha e participava de atividades na Casa da Reconciliação sempre que podia. Muitas vezes ela se mostrava preocupada e insistia para que os filhos passassem o mais tempo possível ali depois da escola, para ficarem longe das ruas.

A boy plays in the sand on Colombia's Caribbean coast
Menino brinca na costa caribenha da Colômbia (Gabriel VasquezCC BY-NC-ND 2.0)

Naquela noite, a pequena mão de Dani me ofereceu uma dose de aguardente de anis para celebrar o Natal. Meu olhar passou da bebida para o rostinho do menino de 10 anos. Suspirei triste, não mais surpresa, mas ainda assim desolada. Agradeci e aceitei a bebida, perguntando o que ele pretendia fazer naquela noite. “Eu tenho que fazer uma farra“, ele respondeu.

Conforme me explicaram Dani e outros garotos, “farras”, ou festas, eram encontros de jovens para ouvir música e dançar. Mas um tenente da polícia local, especializado em grupos armados não estatais armados e prevenção de aliciamento, tinha um discurso diferente: as redes de microtráfico da vizinhança usavam essas festas para distribuir drogas de graça, viciar crianças e ampliar sua base de clientes. Ao dizer que “faria” a farra naquela noite, Dani estava me informando que atuaria no lado da distribuição.

“Por que você se meteu nessa porcaria?”, perguntei.

“Para prover”, ele respondeu. O dinheiro que ele ganharia com o tráfico naquela noite seria usado para ajudar nas despesas da casa.

Participação de jovens em grupos armados não estatais

Grupos armados não estatais representam um dos maiores desafios de política pública na América Latina e contribuem diretamente para a região ser considerada a mais violenta do mundo fora de contextos “tradicionais” de guerra. Intervenções de políticas públicas para lidar com os grupos armados têm sucesso restrito, na melhor das hipóteses. Abordagens repressoras tendem a exacerbar o quadro de insegurança, em parte devido à falta de entendimento das nuances desse fenômeno.

A história de Dani é demonstrativa de um conjunto de trajetórias raramente estudadas que sustentam grupos armados não estatais. A participação do garoto não foi motivada principalmente por desejos de poder, status ou fuga de um lar problemático. Ele não participa regularmente como um “membro” nem “pertence” ao grupo.

As intervenções organizacionais e políticas públicas que tentam impedir a participação de jovens em grupos armados provavelmente deixariam Dani escapar porque tendem a ignorar menores “bons” que veem nos bandos uma alternativa viável para atingir “bons” objetivos (como sustentar a família ou ganhar dinheiro para continuar estudando), sem precisar atuar em tempo integral.

Minha referência a jovens “bons” ou “maus” não reflete um julgamento moral e sim a perspectiva das organizações intervenientes e instituições governamentais que fazem a triagem de perfis individuais e familiares.

Embora jovens como Dani vivam em ambientes de alto risco, ele e sua família escapariam da triagem – em sua atual forma estabelecida por políticas públicas e intervenções – porque não exibem as características “ruins” mais procuradas: violência doméstica, evasão escolar, uso de drogas ou o desejo de pertencimento e identidade que grupos armados podem proporcionar a jovens carentes.

Para explorar os padrões de participação e saída de grupos armados não estatais, realizei 15 meses de trabalho de campo etnográfico em Las Delicias e passei 20 meses no Programa de Reintegração e Prevenção (de aliciamento) da Agência das Nações Unidas para Migração, em Bogotá.

Assim como a pesquisa realizada em Barrancabermeja pela psicóloga cultural María Cecilia Dedios, meu trabalho de campo revelou maior grau de porosidade na participação em gangues do que se imaginava. A história de Dani apenas ilustra essa natureza em evolução da participação em grupos armados na Colômbia: os padrões de recrutamento e utilização iludem e subvertem as táticas usadas para atingir crianças “más”, enquanto surgem formas novas e variáveis de participação, entrada e saída. Isso traz implicações claras e significativas para as políticas públicas e para a elaboração de intervenções.

Moradores se divertem em um local que se tornou seguro graças a esforços de prevenção de violência em Cali (PAHOCC BY-ND 2.0)

Evolução dos padrões de aliciamento e utilização dentro dos grupos armados não estatais

Grupos armados diferentes empregam táticas diferentes para engajar jovens e essas abordagens também são distintas em áreas rurais e urbanas.

Em ambientes urbanos como Las Delicias, os bandos começam a recrutar quem tem entre oito e 15 anos de idade. Os menores são usados como informantes, recebem propinas e dinheiro de extorsão, vendem e transportam drogas. Eles se envolvem nesse trabalho por várias razões, inclusive para ter roupas novas, aparelhos tecnológicos, armas, poder, controle territorial, dinheiro ou drogas. Essas formas de trabalho para os grupos armados geralmente permitem que eles mantenham a rotina diária, recebendo pagamento por tarefa executada.

A participação em grupos armados costumava ser ostentada, atraindo indivíduos dispostos a viver com esse estigma. No entanto, minha pesquisa concluiu que cada vez mais jovens “bons” são alvo dos aliciadores porque, com boas notas na escola e histórico de obediência às leis, eles conseguem operar sem que as autoridades percebam. Essa abordagem é entendida por pesquisadores e formuladores de políticas públicas como uma adaptação à perseguição parcialmente eficaz dos grupos armados não estatais.

Esforços e desafios do setor público

Esse envolvimento por períodos mais curtos em atividades ilícitas por jovens que se comportam bem na maior parte do tempo é um problema específico para quem tenta impedir o aliciamento de menores. Um tenente da Polícia Nacional demonstrou frustração com intervenções por representantes de agências internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU), que parecem supor que nada é feito para resolver essa questão:

Não é que nós não temos programas ou que os jovens não venham. Eles vêm, na maior parte do tempo. Mas então eles somem por alguns dias para fazer o que precisam fazer.

Esses sumiços muitas vezes acontecem para que os menores realizem atividades em gangues locais, frequentemente (mas não sempre, claro) envolvendo garotos e rapazes que precisam gerar renda para sustentar a família.

Assim como Dani, esses jovens vivem em lares razoavelmente seguros, frequentam a escola, têm poucos problemas com autoridades e querem progredir na vida. No entanto, em ambientes carentes em que o trabalho fora da lei está sempre disponível, a exigência dupla de que estudem e ajudem a sustentar a família pode facilmente resultar no envolvimento desses menores em atividades ilegais, pelo menos em tempo parcial.

Uma perspectiva mais ampla para intervenções e políticas públicas

As intervenções organizacionais e governamentais costumam estruturar ações em termos de fatores de risco – características indesejáveis que levam a formas destrutivas de convívio social. Abordagens mais integradas promovem formas positivas de vida individual, familiar e comunitária e trabalham para melhorar condições e comportamentos negativos que levam à atividade criminosa.

O que as informações acima demonstram, no entanto, é que nem todos os jovens que participam de atividades de grupos armados não estatais podem ser identificados por avaliações que agrupam populações por meio da identificação de comportamentos de risco e lares problemáticos. Sendo assim, recomendo uma abordagem mais holística ao estudo do aliciamento e reintegração, que acomode a fluidez desse modo de participação em atividades ilícitas.

Também recomendo uma mudança no pensamento paradigmático por trás da elaboração das intervenções. Em vez de mirar menores “maus” para torná-los “bons”, seria melhor focar naqueles que estão fazendo o mal para fazerem o bem. É mais fácil alcançar esses jovens porque seu comportamento sugere que eles se recusariam a participar de atividades ilegais se vivessem em condições estruturais que não criassem a necessidade de tal participação. Esse tipo de abordagem também produziria comunidades mais resilientes e evitaria que as autoridades recorressem a métodos repressivos.

Grupos armados não estatais na Colômbia e em toda a América Latina adquirem formas que não seguem os limites convencionais do que são gangues, grupos rebeldes, comunidades civis e organizações criminosas. Em parte, isso é um reflexo de sua participação em muitas atividades não criminais e de seus desejos e entendimentos conflitantes sobre si próprios e o mundo em geral.

Abordagens de pesquisa e intervenção precisam acomodar esses limites tênues e a complexidade do mundo real se pretendem fazer as perguntas certas – e encontrar as respostas corretas – quando se trata da participação de jovens em grupos armados na Colômbia e em outros países.

 

Notas:
• Nomes de pessoas, bairros e organizações foram trocados neste artigo
• Tradução de Camila Fontana Corrêa
• As ideias expressas neste artigo são dos autores e não refletem a posição do Centro ou da LSE
• Por favor, leia nossas Políticas de Uso (EN) antes de fazer comentários

About the author

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Erin K. McFee

Erin K. McFee is a Visiting Fellow at LSE Latin America and Caribbean Centre and a Postdoctoral Teaching Fellow in Anthropology at The University of Chicago, where she teaches courses on peacebuilding, trust, power, and political anthropology. She completed her PhD in Human Development at The University of Chicago, an M.A. in the same, and obtained an MBA from Simmons University in Boston. Erin’s research focuses on individuals who decide to take up and lay down arms with non-state armed groups, the interventions that target these individuals, and the topic of trust in societies and communities that have experienced mass atrocities. She draws from theoretical work in philosophy, anthropology, and social psychology, and her work speaks to both the academic and public policy domains. Her most recent work with co-editor Angelika Rettberg can be found on Universidad de los Andes Press: Excombatientes y acuerdo de paz con las FARC-EP en Colombia: Balance de la etapa temprana.

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