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Joe Mulhern

March 1st, 2021

O novo estádio do Everton FC é uma lembrança gritante do histórico envolvimento de Liverpool com a escravidão no Brasil

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Estimated reading time: 7 minutes

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O novo estádio do Everton FC é uma lembrança gritante do histórico envolvimento de Liverpool com a escravidão no Brasil

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Profile photo of Joe MulhernApesar da oposição de grupos de preservação do patrimônio histórico, autoridades deram sinal verde na semana passada para o Everton Football Club se mudar para um novo estádio de £500 milhões na Doca Bramley-Moore. O local, listado com grau II de proteção do patrimônio histórico britânico, é corretamente reconhecido como exemplo relevante da rica herança marítima de Liverpool. No entanto, seu nome também recorda o envolvimento da cidade com a escravidão no Brasil, que perdurou por muito tempo após a abolição nas colônias da Grã-Bretanha, escreve Joe Mulhern (Durham University).

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Como Liverpool foi o epicentro do comércio de escravos britânico, boa parte do acerto de contas histórico justificadamente se concentrou nas conexões da cidade com esse tráfico até seu término, em 1807, e com a escravidão nas colônias britânicas do Caribe até sua abolição, em 1833. Além disso, as ligações de Liverpool com a escravidão nos Estados Unidos e o apoio robusto da cidade aos Confederados durante a Guerra Civil Americana (1861-1865) vêm sendo amplamente destacados. Contudo, há menos reconhecimento da profunda conexão de Liverpool com o Brasil, onde o comércio ilegal de escravos se manteve ativo até 1850 e a escravidão persistiu até 1888. No meio desse problema estava John Bramley-Moore, comerciante e político de Liverpool que deu nome ao cais onde o Everton Football Club pretende construir seu novo estádio.

A portrait of John Bramley-Moore holding a book with a ship at sea in the background
O local onde o Everton construirá seu novo estádio tem o nome de John Bramley-Moore, que lucrou direta e indiretamente com a exploração de pessoas escravizadas no Brasil (por Edward Benson; domínio público)

Quando o cais com seu nome foi inaugurado, em agosto de 1848, a carreira política de John Bramley-Moore estava prestes a decolar. Poucos meses depois, ele assumiu o cargo de prefeito de Liverpool e, em 1854, foi eleito para o primeiro de dois mandatos como membro do parlamento em Westminster (1854-1859; 1862-1865). Durante esse período, Bramley-Moore manteve um interesse ativo no negócio mercantil que lhe trouxe grande riqueza e capital social suficiente para lançar sua carreira política. Bramley-Moore foi um “Brazilian merchant” que lucrava direta e indiretamente com a exploração de pessoas escravizadas.

Quando chegou ao Rio de Janeiro ainda jovem, por volta de 1820, ele ainda era conhecido como John Moore. Somente em 1841 ele viria a acrescentar o Bramley a seu sobrenome. Pouco se sabe sobre seus primeiros anos no Rio, que era então a capital do império português. Moore foi apenas um dos muitos comerciantes que buscaram fortuna em um mercado que havia sido recentemente aberto ao comércio britânico. Foi na década após a Independência do Brasil, em 1822, que a empresa John Moore & Co começou a consolidar sua posição como uma das principais casas de importação e exportação do Rio de Janeiro, lucrando ao operar em uma economia e uma sociedade onde a escravidão predominava.

Somente na década de 1820, os traficantes de escravos levaram à força mais de meio milhão de africanos para o Brasil para trabalhar em plantações e em diversas atividades rurais e urbanas. Além de exportar produtos resultantes do trabalho escravo, como açúcar e café, o próprio Bramley-Moore era proprietário de pessoas escravizadas, fazendo uso de trabalho forçado tanto em seu estabelecimento comercial no centro da cidade quanto em sua “extensa e lindamente situada” chácara no Alto da Boa Vista, onde eram cultivados cinco mil pés de café.

A 19th-century painting depicting the British-owned Chácara de Russel estate in Rio de Janeiro
Obra de Pieter Godfred Bertichen que retrata a Chácara Russel, outra propriedade britânica no Rio de Janeiro (domínio público)

Durante uma visita ao Rio, em 1831, o irmão de John, Joseph Bramley-Moore, escreveu em seu diário sobre algumas dessas pessoas escravizadas. Em um gesto característico das justificativas e ilusões empregadas pelos proprietários de escravos britânicos e seus defensores, Joseph fez questão de descrever o irmão como “um senhor gentil e indulgente”. A ideia do proprietário de escravos britânico benevolente é obviamente infundada em um sistema definido por violência e coerção. De fato, o autor do diário enfraquece seu próprio argumento ao descrever o caso do cocheiro Joaquim, que conseguiu fugir e viver em liberdade em uma cidade próxima antes de ser perseguido e recapturado por John Bramley-Moore.

O homem que dá nome ao cais em Liverpool também foi cúmplice da violência cometida no tráfico transatlântico de africanos por meio do papel de sua empresa no fornecimento e financiamento do comércio de escravos para o Brasil. Apesar de o governo brasileiro ter proibido a importação de escravos a partir de 1831, um extenso comércio ilegal persistiu até meados daquele século, sendo responsável por colocar cerca de 750 mil africanos em cativeiro à revelia da lei. Embora essas iniciativas fossem comandadas principalmente por luso-brasileiros, as empresas britânicas desempenharam um papel central no ressurgimento do comércio de pessoas escravizadas ao fornecer bens manufaturados com crédito a longo prazo, o que facultava aos traficantes a possibilidade de realizar os pagamentos quando voltassem dessas viagens clandestinas. Esses arranjos eram tão lucrativos para os comerciantes britânicos (boa parte com filiais em Liverpool) que o diplomata britânico no Rio chegou a admitir em 1839 que “muitos, ou melhor, a maioria dos nossos conterrâneos no Brasil, são mais ou menos abertamente defensores e partidários do tráfico de escravos”.

A painting of slaves below deck on the Gloria during the Middle Passage
“Bramley-Moore também foi cúmplice da violência do tráfico transatlântico de africanos por meio do papel de sua empresa no financiamento do comércio e do fornecimento de escravos para o Brasil” (cenas abaixo do convés do navio Glória, que passava por portos no Rio de Janeiro e na Bahia, por Richard Drake; domínio público)

John Bramley-Moore deixou o Brasil em 1835 para administrar seus negócios em Liverpool. A conexão prolongada de sua empresa com o comércio ilegal é das mais evidentes em se tratando das firmas britânicas que atuavam no Brasil. Em 1839, a John Moore & Co e outras empresas britânicas declararam publicamente seu apoio a Manoel Pinto da Fonseca, atestando o bom caráter do português. Fonseca já havia organizado viagens ilegais para trazer escravos e se tornaria um dos mais notórios traficantes da década de 1840.

O exemplo mais flagrante da cumplicidade de Bramley-Moore no comércio ilegal de escravos, porém, aconteceu em março de 1840, quando o navio Guiana foi capturado pela Marinha Real Britânica na costa ocidental da África. Bramley-Moore e outro comerciante de Liverpool eram proprietários do Guiana, que foi então levado para Serra Leoa. Lá, a embarcação foi condenada pelo Tribunal do Vice-Almirantado por auxiliar e incentivar o comércio de escravos. As suspeitas da corte tinham fundamento: a embarcação havia sido fretada pelo conhecido traficante Manoel Francisco Lopes na Bahia – onde a John Moore & Co tinha escritório – com o intuito de fornecer os “bens de costa” tipicamente empregados no comércio ilegal.

A British steamer chases a Brazilian slave ship
A embarcação Rifleman, da Marinha Real Britânica, persegue um navio negreiro do Brasil (The Illustrated London News, 1850; domínio público)

Apesar de ser um dos poucos exemplos de navio britânico condenado por ajudar e incentivar o comércio de escravos na época, o episódio envolvendo o Guiana teve pouco impacto sobre a reputação de Bramley-Moore ou sobre sua carreira nos negócios e na política. No ano seguinte, ele foi eleito vereador de Liverpool e logo se envolveu no projeto do cais que acabou levando seu nome. A ascensão política de Bramley-Moore foi sustentada por seu sucesso no comércio, particularmente a exportação de café — commodity cultivada por escravos que se tornou o motor de crescimento da economia brasileira a partir da década de 1830. Bramley-Moore usou sua influência política para defender as relações comerciais com o Brasil e sua economia escravista, em atuações como presidente da Associação Brasileira de Liverpool e como membro eleito do parlamento.

Bramley-Moore faleceu em 1886, dois anos antes de a Lei Áurea finalmente abolir a escravidão no Brasil. A fortuna dele e a carreira política que proporcionou foram construídas em grande parte sobre a exploração direta e indireta das pessoas escravizadas e de seu trabalho. Apesar do episódio bastante noticiado envolvendo o Guiana, as conexões de Bramley-Moore com a escravidão foram apagadas de seu legado. Seu verbete no Dicionário da Biografia Nacional (1901), usado como base para muitas referências atuais sobre ele, não menciona a escravidão. Essa omissão tampouco foi corrigida no verbete revisado sobre Bramley-Moore que faz parte da edição de 2004 do Dicionário Oxford da Biografia Nacional. Como observado pelos organizadores do projeto Legacies of British Slave-Ownership, isso faz parte de um processo mais amplo de omissão que tornou as problemáticas conexões com a escravidão praticamente invisíveis na história da Grã-Bretanha.

Uma campanha intensa encabeçada por historiadores, por organizações de preservação do patrimônio histórico e pela comunidade local fez com que a Câmara Municipal de Liverpool assumisse o compromisso de instalar placas que contextualizem os laços com a escravidão em diversas ruas que levam nomes de traficantes de escravos. Ao assumir a custódia de um local que logo estará no centro das atenções globais, o Everton Football Club e a Câmara Municipal têm uma oportunidade de contribuir ao apresentar o contexto de uma área que leva o nome de um indivíduo envolvido tão profundamente com a escravidão no Brasil.

 

Notas:
• As ideias expressas neste artigo são dos autores e não refletem a posição do Centro ou da LSE
• Tradução de Camila Fontana Corrêa
• Por favor, leia nossas Políticas de Uso (EN) antes de fazer comentários

About the author

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Joe Mulhern

Dr Joe Mulhern is a historian of 19th-century Anglo-Brazilian relations and an honorary fellow of Durham University's Department of History. He is currently working on a book project informed by his PhD thesis, which was entitled After 1833: British Entanglement with Brazilian Slavery (Durham University, 2018).

Posted In: Geopolitics | Posts em português

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