Muito tempo após a abolição da escravidão nas colônias britânicas, um banco predecessor do Lloyds Banking Group manteve pessoas escravizadas no Brasil como garantia na concessão de empréstimos, por vezes forçando a venda desses seres humanos para liquidar dívidas. Contrariando uma crença popular, o caso do London and Brazilian Bank mostra que o envolvimento da Grã-Bretanha na escravidão não terminou em 1833, mas tomou diferentes formas em lugares distintos, escreve Joe Mulhern (Durham University).
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Os protestos recentes do movimento Black Lives Matter incentivaram uma revisão minuciosa dos vínculos históricos de inúmeras empresas britânicas com a escravidão. Instituições financeiras, incluindo bancos de peso, têm recebido atenção de artigos fundamentados pelas pesquisas do projeto Legacies of British Slave-Ownership da University College London (UCL-LBS).
Usando o banco de dados desse projeto, jornalistas vêm apurando que indivíduos envolvidos em bancos que deram origem a instituições como RBS, Barclays e HSBC estavam entre os muitos proprietários de escravos que receberam parte da indenização de 20 milhões de libras esterlinas (o equivalente hoje a aproximadamente 17 bilhões de libras) que o governo britânico pagou após a abolição da escravidão nas colônias britânicas, em 1833.
Considerando o foco do projeto UCL-LBS, é compreensível que a polêmica recente tenha girado em torno da escravidão nas antigas colônias britânicas. Mas esse essencial acerto de contas também precisa levar em conta as conexões dos bancos britânicos com a escravidão em outros lugares, que continuou muito depois de 1833.
O Lloyds, o London and Brazilian Bank e a escravidão no Brasil
No Brasil, um banco que deu origem ao Lloyds Banking Group permaneceu profundamente envolvido com a escravidão até as vésperas da abolição, em 1888. Ou seja, mais de 50 anos após a abolição da escravidão nas colônias britânicas, o London and Brazilian Bank continuava explorando o trabalho e o valor de mercado das pessoas escravizadas com efeitos devastadores para suas vidas – e o tempo todo escondeu essa cumplicidade dos investidores e do público na Grã-Bretanha.
Fundado em 1862, o London and Brazilian Bank operou de forma independente até 1923, quando o Lloyds Bank adquiriu seu controle acionário. O website do Lloyds Banking Group reconhece esse passado em comum, tendo sido recentemente atualizado com a informação de que o primeiro presidente do London and Brazilian Bank, John White Cater, possuía escravos. Um “velho cafeicultor”, Cater recebeu indenização por seus escravos libertados na Jamaica, assim como seu colega de conselho diretor, John Bloxham Elin. Um terceiro integrante do conselho do banco, Edward Johnston, era proprietário de escravos no Brasil e se casou com a herdeira de uma família de cafeicultores no Rio de Janeiro. A riqueza gerada com a escravidão no Caribe e no Brasil ajudou a estabelecer um banco que investiria na continuidade da exploração de pessoas escravizadas. [Edição: o Lloyds Banking Group atualizou seu website em resposta a este artigo.]
A conexão entre a cafeicultura e os fundadores do banco persistiria durante suas operações iniciais, em concomitância com o desenvolvimento da commodity cultivada por escravos – principal motor do crescimento da economia brasileira na época. Embora seu propósito declarado fosse comercial, em 1868 o banco acumulava uma carteira de hipotecas garantidas por várias plantações de café em São Paulo e pelas mais de 800 pessoas que trabalhavam nas propriedades como escravos. Eles foram transferidos para o banco como garantia de uma substantiva linha de crédito de 150.000 libras (cerca de 9 milhões de libras atualmente) da casa bancária Gavião Ribeiro Gavião, grande financiador da economia agrícola de São Paulo e com importante atuação no comércio de escravos interprovincial.
Escravidão no Brasil era abafada em Londres
Mais tarde, a sede do banco em Londres puniria os gerentes das agências que sancionaram a transação inicial. Contudo, as críticas não surgiram da repulsa moral ao financiamento da escravidão ou à manutenção de pessoas como garantia de empréstimos, mas do fato de que a recuperação dessas dívidas era notoriamente problemática. Por vezes, o banco recorreu a processos judiciais com impactos devastadores na vida dos escravizados.
Foi o que aconteceu quando o banco tentou recuperar a dívida de um cafeicultor do Rio de Janeiro, em 1869. Quando o Barão do Turvo deixou de pagar um empréstimo, os advogados do banco realizaram, por ordem judicial, o leilão de 103 escravizados, entre as quais se encontravam famílias com crianças de um ano de idade. Pelo menos 30 pessoas foram vendidas em leilão e suas vidas mudaram irreversivelmente por causa da atuação do banco britânico para equilibrar suas finanças.
O envolvimento do London and Brazilian Bank com a escravidão foi abafado pela linguagem eufemizada das assembleias de acionistas. Havia um imperativo legal para isso, pois uma lei de 1843 proibia a venda forçada de escravos para liquidar dívidas devidas a credores britânicos em jurisdições no exterior. O banco também tinha receio de provocar reações dos investidores na Grã-Bretanha, onde o sentimento antiescravista havia se tornado um princípio da identidade nacional. Por esses motivos, havia menção a “terras”, “confinamentos” e “outras propriedades”, mas nunca a pessoas escravizadas mantidas como garantia de empréstimos.
Envolvimento direto e indireto
As relações com investidores também influenciaram a maneira como o banco administrou a Fazenda Angélica, que produzia café no interior de São Paulo, entre 1871 e 1881. Após declarar um compromisso inicial com o trabalho livre, uma experiência fracassada com imigrantes alemães levou os gestores a empregar pessoas escravizadas a partir de 1876. Mais uma vez, esse envolvimento direto com a escravidão foi abafado nas assembleias de acionistas, com o presidente declarando calculadamente em 1880 que, “[como] empresa inglesa, o banco não poderia empregar escravos”. Na verdade, o banco havia se aproveitado de uma brecha na Lei de 1843, que permitia o aluguel de trabalho escravo no exterior.
Quando a tão aguardada venda da Fazenda Angélica foi concluída, em 1881, o presidente inverteu a narrativa, declarando que “o banco agora não empregava um único escravo”. No entanto, mesmo após a venda da propriedade, o banco continuou envolvido com a escravidão porque a compra foi feita por meio de um financiamento que tinha como garantia 80 escravos que trabalhariam no local.
Seis anos mais tarde, durante um período de maior resistência que precedeu a abolição, o novo proprietário da fazenda, o Barão de Grão-Mogol, alegou que não podia libertar os trabalhadores restantes porque eles ainda serviam como garantia de empréstimo. Somente o processo de abolição no Brasil removeu a marca da escravidão das operações do London and Brazilian Bank.
Embora esse banco seja um dos poucos com clara ligação com uma instituição moderna, muitos empreendimentos e indivíduos britânicos continuaram a explorar a escravidão tempos após a abolição britânica. A existência de senhores de escravos britânicos em lugares como Brasil, Cuba e sul dos EUA muito depois de 1833 desafia narrativas que colocam a abolição no centro do relacionamento da Grã-Bretanha com a escravidão, apagando efetivamente uma história de exploração que durou séculos.
Notas:
• As ideias expressas neste artigo são dos autores e não refletem a posição do Centro ou da LSE
• Este artigo se baseia na tese de doutorado do autor After 1833: British Entanglement with Brazilian Slavery (Universidade de Durham, 2018).
• Tradução de Camila Fontana Corrêa
• Imagem da faixa: Uma plantação de café no Brasil, c. 1885, Marc Ferrez, domínio público
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