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Amir Lebdioui

June 30th, 2021

Desmascarando o milagre do livre mercado: como a política industrial viabilizou a diversificação das exportações no Chile

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Estimated reading time: 7 minutes

Amir Lebdioui

June 30th, 2021

Desmascarando o milagre do livre mercado: como a política industrial viabilizou a diversificação das exportações no Chile

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O entendimento do Chile como “milagre do mercado livre” é um dos mitos mais poderosos da história recente do desenvolvimento econômico, mas a diversificação da pauta de exportações no país resultou efetivamente de intervenções estatais cuidadosamente planejadas, escreve Amir Lebdioui (LSE Latin America and Caribbean Centre).

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• Disponible también en español

A avaliação das políticas industriais no Chile continua polêmica e polarizadora. O país há muito tempo é retratado quase como exemplo clássico do sucesso da prática de “deixar o mercado trabalhar”, tendo em vista o amplo consenso entre economistas tradicionais de que o Chile teve grande sucesso na promoção de um crescimento robusto e estável porque abraçou políticas de livre mercado.

À primeira vista, parece verossímil. Afinal, o Chile apresentou uma das taxas de crescimento mais rápidas da América Latina desde a virada neoliberal da década de 1970. Apesar da contínua importância do cobre, o país também conseguiu diversificação em outros setores e adquiriu novas vantagens competitivas entre as décadas de 1960 e 1990. A visão dominante sustenta que a entrada bem-sucedida de novos setores competitivos na pauta de exportação decorre de quatro décadas de compromisso com a liberalização e com políticas de livre mercado.

No entanto, como discuto em artigo recente publicado pela Development and Change, a diversificação das exportações chilenas não resultou de políticas de livre mercado, mas sim de intervenções estatais cuidadosamente planejadas. A ideia do Chile como um “milagre do livre mercado”, apresentada inicialmente por Milton Friedman, é, portanto, um dos mais duradouros mitos na história recente do desenvolvimento econômico.

Pauta das exportações do Chile, 2017
Fonte: UN COMTRADE (2019)

A mão invisível no volante?

O Chile costuma ser citado por admiradores e críticos como o modelo neoliberal de desenvolvimento por excelência na América Latina, uma vez que se tornou o primeiro país da região a abraçar o neoliberalismo após o golpe de 1973 contra o governo socialista de Salvador Allende. O governo de Augusto Pinochet afirmava explicitamente que evitava escolher vencedores ao “deixar o mercado decidir”, invocando assim a lógica da Escola de Chicago. Contudo, o governo também agia de maneira discreta — mas contundente — para subsidiar a transformação estrutural da economia, intervindo em quase todos os principais setores que apareceram na pauta de exportação desde a década de 1970 (Figura 1, acima).

A Figura 2 destaca as políticas verticais que desmentem o raciocínio de neutralidade em relação aos diferentes setores e o papel desempenhado por instituições públicas de diferentes perfis (incluindo agências governamentais, Banco Central e universidades) no processo de acumulação de capacidades e na superação de falhas de mercado que inibiam o surgimento de novas indústrias.

Intervenções estatais por trás do surgimento de novos setores na pauta exportadora do Chile
Fonte: Lebdioui (2019)

Contrastando com a tão disseminada narrativa do laissez-fairepolíticas industriais foram usadas para efetivamente governar o mercado ao enviar sinais na direção de áreas nas quais o empreendedorismo privado deixava a desejar. O papel do estado chileno foi essencial para catalisar a acumulação de capital humano, garantindo a reputação de setor “nacional” por meio de intenso controle regulatório e de qualidade, viabilizando empreendimentos de capital de risco semipúblico e difundindo conhecimento e tecnologia em setores não ligados ao cobre por meio de várias instituições públicas. As intervenções incluíram até créditos subsidiados via Banco Central e Corporação de Fomento à Produção (CORFO), especialmente nos setores florestal e de frutas.

Posteriormente, a abertura da economia na década de 1980 tirou proveito do capital humano especializado, do conhecimento e das capacidades tecnológicas acumuladas por meio de intervenções verticais anteriores à liberalização. Embora haja espaço para argumentar que alguns setores, como o vinícola, poderiam ter se desenvolvido apenas com as forças de mercado, é inegável que outros setores não teriam se desenvolvido na mesma medida sem intervenções verticais. Em alguns casos, dificilmente teria havido qualquer desenvolvimento, tendo em vista as concessões que o governo direcionou para os setores florestal e de salmão.

A vantagem comparativa que o Chile conquistou com salmão, produtos florestais e produção de frutas não tem origem somente em fatores naturais, sendo adquirida principalmente por meio de modernização da tecnologia, acumulação de capital humano, controle de qualidade das exportações e incentivos financeiros — ou seja, por meio de intervenções estatais. E embora a modernização tecnológica da indústria de vinhos tenha resultado principalmente de investimentos estrangeiros e políticas horizontais (diferentemente de outros setores), vale ressaltar que esses investimentos estrangeiros foram alocados para um setor em que o Chile já operava e, sendo assim, não promoveram um novo produto que não estivesse nas estruturas produtivas pré-existentes no país.

An atlantic salmon jumping up a waterfall
“Vantagem comparativa do Chile em setores como o de salmão foi adquirida principalmente por meio de intervenções estatais” (Chanonry/Shutterstock.com)

Contrastando com os setores que contaram com intervenções estatais, a agregação de valor foi relativamente fraca em áreas nas quais o estado adotou uma abordagem mais laissez-faire, como no cobre. Outro estudo recente concluiu que a indústria em torno do cobre no Chile é fraca na comparação com outros países com abundantes recursos minerais, como Austrália e Malásia, onde políticas industriais foram intensamente empregadas para agregar valor tanto nas operações de abastecimento de insumos para as unidades produtivas (upstream) quanto na produção e distribuição para os consumidores (downstream).

É outro equívoco crer que a política industrial foi característica consistente da política econômica de Pinochet. A terapia de choque do governo em meados da década de 1970 — com eliminação dos controles de preços, redução dos gastos públicos pela metade, privatização de centenas de empresas estatais, cortes drásticos nas tarifas de importação — empurrou o país para uma crise financeira em poucos anos. Essa abordagem também provocou grande aumento da importação de produtos não tradicionais e queda da importação de máquinas e equipamentos, de modo que não houve aumento do investimento produtivo e retomada das taxas de crescimento observadas na década de 1960. As políticas de livre mercado também resultaram em problemas financeiros e de balanço de pagamentos antes da crise da dívida em 1982, o que pode explicar porque o regime militar intensificou o uso de políticas industriais posteriormente.

Abandono das políticas industriais, concentração das exportações e dependência das commodities

Embora alguns dos instrumentos de política vertical de maior sucesso tenham sido usados durante o regime militar (1973-1990) aparentemente liberal na esfera econômica, o abandono progressivo dessas ferramentas de política governamental a partir da década de 1990 tem correlação com a diminuição da diversificação das exportações.

Evolução do Índice FMI de Diversificação das Exportações no Chile (1964-2010)
Fonte: IMF (2018)

Desde 1990, a nova política econômica está enraizada em fundamentos neoliberais, com consenso na política governamental de que o crescimento econômico se baseia na estabilidade macroeconômica (inflação baixa, déficit fiscal baixo e déficit em conta corrente moderado), com a visão de que a política industrial é desnecessária ou improdutiva. A política econômica também se concentrou nas vantagens comparativas naturais do país, que dão mais importância aos recursos naturais do que à acumulação potencial de competências, ao aprendizado na prática e à inovação incremental em novos setores industriais.

Embora faça sentido focar em setores estritamente relacionados aos recursos naturais, isso não deve impedir apostas estratégicas que vão além das vantagens comparativas de um país. Ainda que o Chile esteja entre as economias que mais cresceram na América Latina nas últimas décadas, boa parte desse crescimento desde 1990 é atribuído aos preços elevados do cobre. Efetivamente, o crescimento chileno começou a se desacelerar em 2014. Entre 2014 e 2019, o crescimento médio do PIB caiu para menos de 2,0% (e atingiu 1,0% em 2019), colocando o Chile em 17º lugar entre 33 economias da América Latina e Caribe.

O fato de a recente concentração das exportações chilenas ter eventualmente resultado em crescimento econômico mais lento mostra que “aderir estritamente aos fundamentos macroeconômicos não basta para garantir crescimento econômico estável de ponta se fragilidades específicas aos setores não forem tratadas”. Diversos economistas chilenos (como Manuel Agosín, José Miguel Ahumada, Claudio Bravo-Ortega, Ricardo Ffrench-Davis, Nicolas Grau, Gabriel Palma e Andres Solimano) produziram trabalhos bastante influentes sobre isso, analisando de forma crítica o papel das intervenções estatais e os limites do modelo neoliberal no Chile.

Por que isso é importante para o Chile hoje

Ao longo da última década, o Chile tem sido palco de demonstrações de insatisfação social, que culminaram nos protestos de 2019. As manifestações foram motivadas pela percepção de aumento da desigualdade e causaram considerável instabilidade política e econômica. A desigualdade de renda está intrinsecamente ligada à crescente concentração das estruturas produtivas no país.

Crowds of protesters in Santiago, Chile, surrounding a statue
“Protestos motivados pela percepção de aumento da desigualdade causaram considerável instabilidade política e econômica” (“Protestas en Chile de 2019, Plaza Baquedano, Santiago, Chile“, Carlos FigueroaCC BY-SA 4.0)

Portanto, um novo modelo é urgente para diversificar a economia chilena, criar empregos e reduzir as desigualdades. Neste modelo, é necessário que a política industrial volte a ser prioridade na agenda governamental. Aprimorar a pré-distribuição de renda exigiria coordenação entre as políticas industrial, social e educacional para gerar demanda por trabalhadores com novas habilidades adquiridas.

Também é preciso haver política industrial para aproveitar ao máximo as reservas de lítio como instrumento para o desenvolvimento produtivo. É crítico evitar alguns dos erros do setor de cobre – como a intervenção estatal limitada para promover a agregação de valor – uma vez que o lítio oferece espaço para o Chile avançar na corrida tecnológica.

A busca por um modelo de desenvolvimento diferente no Chile representa uma oportunidade para repensar o papel da intervenção estatal. Como ensinam o Milagre do Leste Asiático e a própria história do Chile, elementos como a acumulação de capital humano direcionado, difusão tecnológica, apoio a pesquisa e desenvolvimento e sustentabilidade ambiental são indispensáveis para a aquisição de novas vantagens comparativas, mas difíceis de administrar sem intervenções estatais.

Assim, desmascarar o mito das soluções neoliberais do Chile ajuda não apenas a traçar uma narrativa com mais nuances sobre o passado econômico do país, mas também a moldar seu futuro.

 

Notas:
• As ideias expressas neste artigo são dos autores e não refletem a posição do Centro ou da LSE
• Este artigo é uma versão levemente editada de um conteúdo publicado originalmente na Developing Economics
• Tradução de Camila Fontana Corrêa
• A licença Creative Commons não se aplica a este conteúdo
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About the author

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Amir Lebdioui

Dr Amir Lebdioui is the Canning House Research Fellow at LSE Latin American and Caribbean Centre. His research examines the interplay between industrial policy, natural resource management, and the sustainable development agenda. He is a lecturer at SOAS, University of London.

Posted In: Economics | Posts em português

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