Segurança da moradia tem um papel significativo nas decisões tomadas pelas mulheres que sofrem violência doméstica. Mesmo quando as sobreviventes conseguem escapar de seus agressores, barreiras sociais e institucionais geralmente as impedem de exercer plenamente os seus direitos de propriedade e as deixam desabrigadas, vulneráveis e em perigo, escreve Raquel Ludermir (Universidade Federal de Pernambuco).
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Maria viveu a vida inteira em áreas pobres do Recife, Brasil, e sofreu violência doméstica por anos. No início, ela se recusava a sair da casa que ela mesma tinha ajudado a construir. No entanto, com o passar do tempo, a violência se tornou tão grave que a necessidade básica de sobreviver a deixou sem alternativas a não ser fugir de casa com seus filhos.
Existem mulheres como Maria em todo o mundo. Globalmente, uma em cada três mulheres sofre violência doméstica, muitas vezes tendo que enfrentar a escolha cruel entre deixar suas casas para sobreviver ou continuar vivendo sob o mesmo teto de seus agressores por falta de alternativa de moradia.
Embora tenhamos muito o que comemorar neste Dia Internacional da Mulher em 2020, ainda existem aspectos importantes da violência doméstica que precisamos entender e abordar de forma mais profunda, tais como o papel da moradia nos relacionamentos abusivos, principalmente em contextos de baixa renda no Sul Global. Onde e como moram as mulheres negras e pobres que vivem relacionamentos abusivos? Para onde vão essas mulheres quando fogem de casa para romper o ciclo da violência doméstica?
Como a questão da moradia está relacionada com a violência doméstica?
Um estudo recente com foco nas relações entre moradia e violência doméstica em áreas pobres do Recife revelou que as desigualdades de gênero na questão da moradia começam desde muito cedo nas trajetórias das mulheres sobreviventes de violência doméstica. Apesar de leis de herança neutras a questões de gênero, na prática, é muito comum que as mulheres saiam da casa de suas famílias quando engravidam, e se mudem para a casa da família de seus companheiros.
Essa decisão sobre onde o novo casal vai morar muitas vezes está atrelada à normas de gênero que determinam que os homens sejam os “provedores” da nova família. Isso justifica, por um lado, que homens sejam herdeiros prioritários na subdivisão dos bens de suas famílias e, por outro lado, que mulheres saiam da propriedade de suas famílias para acessar moradia por meio de seus companheiros, dando início ou acentuando uma série de dependências e desigualdades na relação conjugal.
Ao longo do casamento ou união estável, muitas sobreviventes de violência doméstica ficam sobrecarregadas com tarefas domésticas, o que limita a sua capacidade de trabalho remunerado e, consequentemente, os seus meios de acesso à renda e sua capacidade de contribuir diretamente com a construção e melhoria da moradia do casal. No Brasil, isso não deveria representar um problema, já que o regime de comunhão parcial de bens define que os bens adquiridos durante o casamento ou união estável pertencem ao casal, independentemente de quem pagou por eles.
Contudo, a incompreensão popular sobre esse marco legal afeta sistematicamente a relação da mulher com a propriedade. Se, por estar ocupada em atividades não remuneradas, ela não comprou ou pagou pela moradia, equivocadamente ela não se vê e nem é vista como dona, sob o mal-entendido de que “dono é quem paga”. Se ela investe na construção ou melhoria de uma casa no terreno do companheiro ou dos sogros, ecoa o equívoco que “dono da casa é o dono da terra”.
Quando a violência doméstica acontece nesses contextos de moradia, as mulheres vivem o medo constante de serem expulsas de casa pelos seus parceiros abusivos, ou de terem que fugir para sobreviver. Depois de mapear opções concretas de fuga e moradia, muitas sobreviventes de violência doméstica entram em uma fase cíclica de expulsão: fogem e voltam para casa quando a relação com o agressor se acalma ou quando já não podem mais ficar onde haviam buscado abrigo.
Mais de um terço das sobreviventes de violência doméstica entrevistadas no estudo do Recife encontram-se nessa fase cíclica de expulsão/fuga e retorno para casa. Questões relacionadas à moradia e propriedade têm um peso importante na decisão destas mulheres em continuar morando com o agressor. Muitas simplesmente “não têm para onde ir”; algumas decidem ficar na casa para proteger os direitos de herança dos seus filhos, quando não há consenso sobre quem é dono(a) da casa. Outras, como as beneficiárias de programas habitacionais, estão presas à propriedade da casa: sair significaria perder a posse da casa, sem o direito de acessar novamente programas habitacionais que só podem ser acessados uma vez na vida.
Violência patrimonial: remoções e despejos via violência doméstica
Dentre as mulheres que conseguiram terminar relacionamentos abusivos, entrevistadas no estudo do Recife, poucas conseguiram manter a posse de suas casas. Isso aconteceu somente nos casos em que elas eram as únicas proprietárias da casa onde morava o casal.
Nos casos em que a residência era propriedade do casal, as mulheres que tentaram ficar com a casa sofreram as formas mais severas de violência, incluindo ameaças de morte e agressões físicas gravíssimas, inclusive com a participação de familiares do agressor.
A grande maioria das mulheres que terminaram um relacionamento abusivo tiveram que sair das suas casas, tornando-se, portanto, vítimas de “violência patrimonial”. Algumas perderam a parte da propriedade conjunta a que tinham direito, enquanto as mulheres que não eram proprietárias perderam, no mínimo, o direito à posse segura da moradia, um elemento fundamental do direito humano à moradia adequada.
Violência Patrimonial contra a mulher é uma forma específica de violência doméstica e familiar, relacionada à violação dos direitos de propriedade das mulheres. É um tipo de violência de gênero já reconhecido na legislação de vários países latino-americanos como o Brasil, México e Equador. No entanto, é um tipo de violência ainda pouco estudado e reportado.
No Brasil, por exemplo, é comum que as mulheres não estejam totalmente cientes de seus direitos de propriedade e, como tal, nem sempre consigam identificar e reportar esse tipo de violação. Nas delegacias de polícia e nas varas de violência doméstica, o foco está direcionado para a as formas de violência mais óbvias como a violência física e sexual, enquanto a violência patrimonial, as violações dos direitos de propriedade e moradia das mulheres recebem menor atenção.
Além disso, a partilha de bens em contextos de violência doméstica é tratada em varas cíveis e não nas varas específicas de violência doméstica, o que contribui para dissociar essas disputas por patrimônio da violência de gênero em que estão enraizadas, além de invisiblizar a violência patrimonial.
Impactos da violência doméstica: novos ciclos de insegurança e violência
Em todo o Brasil, um país com mais de 200 milhões de habitantes, existem somente cerca de 70 abrigos de violência doméstica. Somente mulheres em estágios mais graves do ciclo da violência, como as que foram ameaçadas de morte pelo agressor, podem acessar esses abrigos. Não existem programas habitacionais que ofereçam opção concreta de moradia para as mulheres que fogem da violência doméstica. Em casos de separação, ficar na casa onde morava o casal pode ser ainda mais perigoso para a mulher, considerando o fato de que as medidas protetivas de afastamento do agressor são constantemente desrespeitadas.
Como resultado dessa limitada resposta governamental, mulheres que fogem de violência doméstica geralmente recorrem a familiares e amigos em busca de abrigo. Em situação de coabitação – “vivendo de favor na casa dos outros” – sua segurança de moradia depende do relacionamento com o dono da casa ou com o responsável pelo domicílio, fazendo com que muitas mulheres vivam com medo constante de serem expulsas ou assediadas novamente.
As mulheres que podem recorrer ao mercado de aluguel muitas vezes enfrentam ônus excessivo com aluguel e têm que escolher entre pagar o aluguel ou suprir necessidades básicas como alimentação. Nesses casos, ter onde morar depende do seu acesso à renda estável e suficiente, o que pode ser extremamente difícil, especialmente para aquelas que se tornam mães solo.
Enquanto isso, as sobreviventes que se mudam para lugares “óbvios”, como a casa de seus familiares, enfrentam assédio contínuo por parte de ex-parceiros e agora estão, elas e seus filhos, expostos a novos ciclos de insegurança e violência. Morando em casas precárias e superlotadas – como residências de um cômodo único para várias famílias ou casas onde os banheiros não têm portas ou são externos ou compartilhados – há um maior risco de abuso infantil, o que indica um dos impactos intergeracionais da violência doméstica.
A questão central, em última análise, é que mulheres como Maria são reais e são muitas, e que a sua luta por moradia adequada e por uma vida livre de violência é mais complexa do que atualmente reconhecemos. Para fazer frente a essas questões, devemos construir políticas públicas integradas que atendam às necessidades de moradia das sobreviventes de violência doméstica, além de diversas medidas de conscientização e prevenção para evitar a persistência das violências e desigualdades baseadas em gênero.
Notas:
• As ideias expressas neste artigo são dos autores e não refletem a posição do Centro ou da LSE
• Tradução da autora
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O Brasil já ocupava desde 2018 a horrenda quinta posição mundial em feminicídio. É preciso romper como ciclo de violência de violência doméstica. Mulher, procure apoio e denuncie. Disque 180
Para saber mais, leia em https://dralumadorea.com.br/lei-maria-da-penha-e-violencia-domestica/