Para a América Latina se livrar do título de “lugar mais desigual do mundo”, será preciso parar de focar nos sintomas e atacar as raízes da desigualdade, escreve Amir Lebdioui (LSE Latin America and Caribbean Centre). Parte do Fórum de Pesquisa Canning House e baseado em o evento Rompendo os Padrões da Desigualdade, do Festival LSE.
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A América Latina, onde os 10% mais ricos são donos de 54% da renda total, é uma das regiões com maior desigualdade no mundo. Mas a capacidade dos governos de redistribuir impostos ou facilitar o consumo pelas populações mais pobres talvez seja insuficiente para reduzir a desigualdade de renda de forma sustentável. Esses programas deixam intocados os maiores obstáculos: competências produtivas limitadas e fraca absorção de mão de obra em setores de maior valor agregado.
Assim, os esforços governamentais precisam coordenar a diversificação para aumentar a demanda por trabalho de modo que ofereça melhor empregabilidade a pessoas de baixa renda. A região agora precisa ir além de soluções paliativas voltadas para os sintomas e atacar as causas básicas. Mas quais são os meios de fazer isso?
- Focar mais na desigualdade pré-distribuição;
- Reduzir a dependência em relação às commodities;
- Usar política industrial de forma mais estratégica;
- Ir além dos programas de transferência condicional de renda, dada a escassez de empregos no setor produtivo;
- Reconhecer que a desigualdade leva à instabilidade econômica e agitação social.
Desigualdade pré-distribuição na América Latina
Em vez do foco prevalente na desigualdade pós-distribuição, o contexto latino-americano requer ênfase na desigualdade pré-distribuição (também conhecida como desigualdade antes dos impostos ou desigualdade de mercado). Embora muitas políticas sociais tenham conseguido reduzir a pobreza e a desigualdade, as estruturas produtivas existentes impõem restrições porque a desigualdade latino-americana resulta de distribuição desigual da renda gerada pelo trabalho (ou seja, a divisão entre os que recebem salários) e não de distribuição funcional da renda (a clássica divisão entre trabalho e capital).
O autor apresentou pesquisa sobre o combate à desigualdade na América Latina durante o LSE Festival 2021 com o tema Moldando o Mundo Pós-COVID (em inglês)
A adequação da tributação redistributiva para reduzir a desigualdade também depende do tamanho da redução necessária. Na América Latina, programas de redistribuição e reformas tributárias dificilmente reduzirão o coeficiente de Gini aos níveis observados entre os países da OCDE porque a distribuição inicial de renda é tão desigual que mesmo uma enorme mudança fiscal não resolveria o problema, mas pode ter efeitos adversos sobre o crescimento econômico. Os coeficientes de Gini calculados antes de impostos para Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, México, Peru e Venezuela estão todos bem acima de 60, enquanto os índices para os países da OCDE estão na faixa de 40 ou pouco abaixo disso.
Concentração das exportações, dependência em relação a commodities e desigualdade pré-distribuição
Também é preciso dar atenção ao papel da diversificação produtiva na desigualdade pré-distribuição. A grande maioria dos países latino-americanos continua dependente de combustíveis fósseis, mineração ou exportações agrícolas (ver mapa abaixo), ainda que com variações sub-regionais. Embora poucos países da América Central sejam dependentes de commodities, todos os países da América do Sul se encontram nessa situação, tornando a região a mais dependente do mundo em relação às commodities.
Isso é relevante porque o gasto social está vinculado à volatilidade dos preços das commodities. Como exemplo disso, o investimento em benefícios sociais e programas de transferência condicional de renda caíram drasticamente após o colapso dos preços das commodities em 2014 (ilustrado abaixo).
O colapso da cotação do petróleo em 2014 também deixou produtores com dificuldades para cobrir custos, levando a uma queda considerável nas receitas públicas, redução do investimento público e desaceleração do crescimento econômico. De maneira mais ampla, a diminuição da receita com commodities se traduziu em elevação das taxas de desemprego na América Latina, como se vê abaixo.
Não deve existir uma abordagem única para a redução da desigualdade. Soluções que funcionam na França ou Dinamarca podem fracassar em outros lugares, especialmente sob as condições peculiares das economias latino-americanas.
Aprendendo a pescar… em um lago seco: o problema das transferências condicionais de renda
Desde sua implementação no Brasil e no México em meados da década de 1990, as transferências condicionais de renda se tornaram uma arma cada vez mais utilizada contra a desigualdade. Trata-se de uma transferência de dinheiro baseada em condicionalidades que geralmente se referem a educação (por exemplo, os filhos do beneficiário precisam frequentar a escola) ou saúde (como a vacinação).
Programas de transferência condicional que incentivam a educação pretendem ajudar os jovens beneficiários a adquirir o capital humano necessário para melhorar suas condições de emprego. Mas sem políticas para estimular a diversificação das exportações e reduzir a dependência em relação às commodities, as transferências condicionais de renda por si só nunca serão suficientes para reduzir a desigualdade de maneira significativa.
Muitos estudos criticam o modelo de transferência condicional de renda não só por presumir que a escolaridade permitirá que os beneficiários acessem empregos disponíveis, mas também por deixar de questionar se esses empregos existirão quando os jovens entrarem no mercado de trabalho. Muitos países latino-americanos têm baixa sofisticação tecnológica, áreas limitadas de vantagem comparativa e, portanto, poucas oportunidades de emprego qualificado. Nesse contexto, para que as transferências condicionais de renda (e a atualização de competências em geral) façam sentido, é preciso que os programas sejam acompanhados da criação de empregos produtivos capazes de absorver competências existentes no mercado de trabalho.
O Brasil é exemplo disso. Embora programas de transferência condicional de renda como o Bolsa Família proporcionem melhor acesso à educação e saúde aos mais pobres, os alunos que se beneficiam do Bolsa Família enfrentam dificuldades para encontrar empregos de boa qualidade. Essas transferências têm impacto positivo sobre a redução de pobreza e desigualdade ao aprimorar a oferta de trabalhadores qualificados, mas somente onde são adequadamente integrados por programas transformadores de desenvolvimento socioeconômico.
As autoridades na América Latina precisam ter certeza de que há peixe no lago antes de começarem a ensinar as pessoas a pescar.
Política industrial, diversificação das exportações e redução da desigualdade
Para tratar essas questões, a intervenção estatal deve ter como objetivo não apenas a oferta de empregos produtivos, mas também a demanda. Políticas educacionais, sociais e industriais coordenadas também podem ajudar a gerar demanda por trabalhadores que adquiriram novas competências. Contar com as forças do mercado não é suficiente para romper os ciclos de desigualdade que atravessam gerações, especialmente quando considerado o impacto das normas sociais, redes pessoais e profissionais, preconceito racial e discriminação de gênero.
Também são importantes a diversificação e a sofisticação das exportações, ressaltando a necessidade de políticas industriais proativas. Antes vista como um tabu associado a ineficiências, intervencionismo abusivo e aproveitamento pelas elites, a política industrial recentemente voltou a ter destaque e agora é considerada ingrediente indispensável da diversificação econômica.
Há cada vez mais evidências confiáveis de que, sozinhas, as forças de mercado não bastam para estimular a diversificação econômica. Em vez disso, a aquisição de novas vantagens comparativas em diversos países que hoje são diversificados foi frequentemente apoiada por intervenções estatais significativas. As políticas industriais – por vezes até disfarçadas – também foram fundamentais para a diversificação das exportações chilenas até a década de 1990, quando ferramentas de política industrial foram gradualmente abandonadas, causando estagnação e então a reversão do processo de diversificação das exportações.
A experiência do Chile é reflexo de tendências mais amplas na região em meio aos esforços dos países para seguir a receita para o equilíbrio macroeconômico prescrita pelo famoso “Consenso de Washington” da década de 1990. No entanto, problemas persistentes com o crescimento econômico, a diversificação limitada das exportações, índices estratosféricos de desigualdade e necessidade urgente de gerar novas fontes de emprego justificam que a política industrial volte a ser prioridade nas agendas governamentais. Ainda que essa volta tenha se iniciado de maneira diferente para cada país, os esforços da maioria das nações latino-americanas são esporádicos e, portanto, não substituem estratégias industriais e de desenvolvimento coerentes.
Desigualdade e agitação social
Os países latino-americanos precisam reconhecer que a redução da desigualdade é problema de todos, incluindo a elite. As ondas de protestos e agitação social em toda a América Latina desde 2019 são indicação clara de como a desigualdade de renda pode provocar instabilidade política, o que por sua vez provoca redução de investimentos, receitas e crescimento econômico. Usando a metáfora da pirâmide de taças de champagne, se a taça de cima estiver pesada demais ou a camada inferior estiver instável, toda a pirâmide desmorona e haverá muitos cacos de vidro pelo chão.
A busca por modelos de desenvolvimento mais inclusivos na América Latina é urgente. Enquanto sociedades como a do Chile tentam um novo pacto social, compreender que uma economia só é tão forte quanto seus membros mais vulneráveis é uma lição que precisa ser aprendida rapidamente.
A desigualdade é eterna? Apenas se escolhermos permitir que isso aconteça.
O Canning House Forum é uma parceria entre LSE Latin American and Caribbean Centre e Canning House que visa promover pesquisas e engajamento de políticas públicas em torno do amplo tema “O Futuro da América Latina e Caribe”.
Notes:
• As ideias expressas neste artigo são dos autores e não refletem a posição do Centro ou da LSE
• Assista à apresentação da pesquisa pelo autor durante o LSE Festival 2021, com o tema Moldando o Mundo Pós-Covid.
• Tradução de Camila Fontana Corrêa
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